Consta que hoje, 08 de março, é o dia internacional da mulher, e me lembrei logo da minha avó materna, a mulher mais internacional que conheci. Vovó foi mesmo a matriarca de todas estas que hoje estão aí envergando sua boa forma e desdenhando a idade, no pressuposto que sempre há uma geração vanguarda que facilita as coisas para as que vêm a seguir. Uma contradição em termos, minha avó: criada em internato de freiras, ao se casar, e começar de fato a viver, foi pioneira em algumas coisas naquela cidade em que morava, no distante extremo sul do Brasil: dirigir, por exemplo. Usar vestido tomara-que-caia também. Abafou num modelo preto, copiado da revista Burma, num baile do Clube Comercial (“freqüentei muito a sociedade”). Recebia imensa influência da Argentina, próxima fisicamente e muito cosmopolita àquela época. Buenos Aires era um destino freqüente, e sempre fazia um enxovalzinho de inverno para os filhos. Construiu sua casa inspirada em fotos de revistas americanas, cuja novidade absoluta era uma entrada circular para o carro, por ela concebida de maneira a permitir sua parada bem em frente à porta. A chuva fria do inverno gaúcho nunca mais atrapalhou ninguém, tampouco os penteados glostorados daquela época. Vovó pensava em tudo. Depois, quando a família veio morar no Rio, na década de 50, elegeu Copacabana como seu território, mas não quis morar em frente à praia, como seu cunhado: o barulho do mar atrapalhava sua noite de sono. Também não quis um apartamento muito grande. Prática, quis facilitar a vida. Foram anos douradíssimos até que enviuvou, em 62. Minguou um ano, contristou-se, chorou até secar as lágrimas, definhou. Passado o luto fechado de preto absoluto que então se usava, fez uma plástica e foi visitar uma amiga que morava na Califórnia. Foi o recomeço. Beverly Hills era muito divertida nos anos sessenta, a sociedade americana muito liberal, de maneira que namorar um pouco, inclusive um homem mais moço, não foi um problema (não sei bem a razão, mas fiquei depositária de uma carta dele para a vovó, uma carta singela, nada de mais, à exceção de uma frase muito insinuante que não confesso para a mamãe nem por um decreto). Teve alguns outros namorados também, inclusive aqui no Brasil, e para eles mostrava uma foto minha eu bem criancinha. Essa coisa de ser avó revelava um pouco a idade, e sua idade era um segredo de estado. Vivia viajando. Conheceu o mundo todo, contava os lugares que não visitara. O espírito aventureiro foi herança de seu pai, um italiano que fugiu de casa aos 16 anos para não entrar para a Marinha, tradição familiar, e, clandestino num navio, foi dar com os costados no sul do Brasil. O mundo, a bem da verdade, era pequeno para sua mente curiosa. Tocava muito bem piano e acordeão, tinha uma boa voz (“minha voz foi melhor, as freiras a estragaram quando me obrigaram a cantar no coro num dia em que estava resfriada”), fazia a posição invertida da yoga para melhorar seu aprendizado de inglês (anteviu a evidência hoje proclamada de que o sangue à cabeça melhora a memória), cozinhava uns pratos italianos, e contas só fazia de cabeça para exercitar o raciocínio. Tinha um grupinho de amigas, eram todas meio parecidas com ela, passeavam muito juntas, ela sempre dirigindo seu fusquinha branco, sempre de cabelo feito, sempre arrumadinha. Vovó foi de vanguarda, mas vanguarda discreta. Detestava a vulgaridade. Ela me ensinou muita coisa com seu jeito original. E me faz uma falta enorme. Vó, nunca te disse antes, mas digo agora: esse tal dia internacional da mulher é a tua cara!