quinta-feira, novembro 21, 2013

procure pensar

Olhar para o passado sempre explica algo do presente, olhar para alguém do passado pode ser mais esclarecedor ainda. Assisti ao documentário sobre o Sobral Pinto e uma luz se abriu. Ele daria toda a explicação pertinente, perspicaz e suficiente a esta polêmica sobre as biografias. Com sua verve já teria há muito tempo proclamado a inconstitucionalidade do artigo 20 do Código Civil. Uma pessoa que lutou pela democracia, pela liberdade de expressão e, sobretudo, pela cidadania responsável já teria entornado esse caldo todo – e sem concessão meio-termo, tipo “isso precisa ser combinado” ou “só queremos conversar”. Foi bom lembrar o quanto custou redemocratizar esse país. Eu estava no comício das Diretas Já e costumo dizer que minha geração é órfã do malogro dessa campanha. Sobral explicaria também o comportamento dos manifestantes e do black bloc. Aliás, explicou: disse que à juventude recomendava se manifestar sempre em ordem e pacificamente justamente para resgatar um tempo em que o direito, ao imperar, a tudo se sobrepunha. Deu o depoimento de haver vivido neste tempo, antes da Primeira Guerra Mundial, e que daí em diante a vida mudara, as relações humanas também (tudo para pior), e que depois da guerra o mundo tinha se tornado um lugar infinitas vezes mais violento. A mudança do mundo e a velocidade da mudança, também sobre isso me fez pensar o Sobral. Lembrei-me do caso do campeonato de lançamento de anões a distância que tanta polêmica causou mundo afora, exemplo dado em sala pelo professor da “nova disciplina dos contratos”. O caso dividiu, literalmente, a turma: é possível, é legítimo, fere a ordem jurídica, permitir que anões sejam arremessados e que saia vencedor quem conseguiu lançá-lo a uma distância maior? Ouvido, o presidente da associação de anões declarou que em nada aquilo feria a sua dignidade, que estava com equipamento de proteção e que, além de tudo, faturava a sua graninha. Mas será que poderia ele decidir por si ou há casos em que o estado deve defender a pessoa dela mesma? É verdade que argumentos consistentes existem para os dois lados. Calculo que no caso das biografias a mesma coisa aconteça. E daí outra dúvida me ocorreu: será que devem os biografados ser defendidos de si próprios ou das suas biografias?

p.s. ainda sobre a reconstrução da democracia e atuação dos membros do Judiciário e advogados, vale ver a tese engendrada pelos advogados quanto ao cabimento de habeas corpus para acusados de crimes políticos, o que havia sido vedado por um decreto. Em suma, os advogados impetravam o habeas corpus logo que o acusado desaparecia argumentando que não havia acusação formal de crime.  Com isso, os juízes davam liminar e oficiavam a todas as delegacias e unidades prisionais para informar se o acusado lá estava preso (por isso ficou conhecido como "habeas corpus de localização"). Identificada a prisão, o acusado era solto em cumprimento à ordem judicial.  Centenas de pessoas escaparam dessa maneira.  Corajosos os juízes e criativos os advogados - a reconstrução da democracia requereu também coragem e criatividade. 

Atualização em 11 de junho: Por 9 votos a 0, o STF, em julgamento ontem, decidiu pela inconstitucionalidade do art. 20 do Código Civil.  Segundo a Relatora, Ministra Cármen Lúcia, "cala boca já morreu". Histórico.

quarta-feira, julho 03, 2013

mind the gap

Manifestações pacíficas, repúdios, barulho, trânsito bloqueado, saques, polícia, muita confusão.  Uma delas vi acontecer na esquina da Presidente Vargas, eu no meu carro e mais uma meia dúzia de pessoas por ali já bem tarde, justo naquele momento.  A Polícia Militar, quando enfim conseguiu liberar a pista, não precisou esperar mais de dez segundos para que eu ultrapassasse aquele circo armado.  Estranhamente não tive medo, mas estava bem alerta, a postos para salvar minha pele, já que era mesmo o caso de salvar a pele.  Isso aconteceu muito antes de o movimento crescer na proporção em que cresceu.  Aí vieram as manifestações, acompanhadas da inundação de opiniões em todos os sentidos.  Nunca vi tanta gente tendo tanta opinião e, ao ser indagada pelos meus familiares europeus do que se tratava, senti que acertara na síntese, ainda que, ao fazê-la, estivesse bem atônita: protesta-se contra a corrupção e contra a falta de bons serviços públicos. 
Passado um tempo, a culpa do mundo que de início fora depositada apenas no governo federal acabou por ser dispersada.  Hoje li que toda a classe política eleita perdeu popularidade.  Intriga-me como algum político pode perder tanta popularidade de um dia para o outro e calculo que ou bem a popularidade não era consistente ou bem num único golpe toda a consciência política foi apreendida, numa queda de ficha coletiva. 
Mas se tudo parecia estar caminhando com alguma ordem, por que então o protesto tomou tamanha proporção? Por que existe tanta ambiguidade entre o que se pensa e o que se pratica? Por que há um espaço entre o que se vive, o que se percebe da vida, e o que se quer de fato? Por que é esparsa e escassa a comunicação com os cidadãos em plena democracia?Por que o caldo estava para entornar e ninguém se dava realmente conta do nível de intolerância a que se chegara?  As vozes das ruas já murmuravam há muito tempo, recolhidas, mas, sabe-se lá porquê, ninguém parecia estar percebendo o murmúrio inicial, tampouco o volume que poderia ganhar.  
Permaneço intrigada, mas uma luz se abriu.  A caminho da final da Copa das Confederações, no metrô, ao ouvir as instruções para o desembarque, agora ditas também em inglês, percebi que ali poderia se aviar a fórmula para a classe política  sobreviver - e  sobreviver a si própria - uma coisa tão sutil e tão certeira: "mind the gap". 

segunda-feira, março 18, 2013

Dez séculos depois, um Bento e um Francisco

Curioso que nessa miríade de análises e comentários que vieram à profusão a respeito da renúncia de Bento XVI e da escolha do novo Papa ninguém tenha se referido a algo que a mim pareceu muito claro logo depois do seu anúncio e do nome que resoveu adotar - e olhe que não sou nenhuma teóloga ou expert na Igreja Católica. 
O fato é que para a Igreja o Século V e o XI ficaram conhecidos como os séculos dos santos, santos que lhe determinaram novos rumos e que são, até hoje, cultuados por sua obra e pelo exemplo que deixaram.   A instituição da Igreja, tanto no Século V quanto depois, no Século XI, estava moribunda, afundada em vergonha e corrupção, muitíssimo distante do legado de Cristo e de sua doutrina.  Não resisitiria muito mais se naquela direção prosseguisse.  Quis o destino, ou a Providência Divina para aqueles que assim chamam o acaso, que viessem homens que a recuperaram e que, ao mostrarem ao mundo que era então possível resgatar seu sentido de honra, deram a doutrina cristã uma nova lufada de vigor.
São Bento, homem de movimento segundo Caetano Veloso, um italiano sábio e perspicaz, não desdenhou o mal, formulou e praticou uma oração exorcista até hoje muito popular.  A despeito das reiteradas negativas da Igreja, fundou sua ordem.  Os beneditinos, educadores e missionários, contra a vontade do poder então dominante saíram mundo afora.  Destemidos, professavam uma doutrina ao mesmo tempo rigorosa com o que reputavam malsão e amorosa com as pessoas.  São Bento resistiu a todo tipo de achaque e ataque a sua pessoa.  É conhecida a passagem em que um corvou salvou-lhe a vida ao morrer após comer a comida envenenada a ele destinada.
São Francisco, um italiano nobre e rico, despojou-se de tudo e fundou a ordem dos franciscanos, da mesma forma contra a vontade do poder dominante.  Francisco era altamente místico e  até hoje é  um ícone do misticismo cristão.  Conversava com os animais, admirava a natureza, e dizem que em seus momentos de êxtase exclamava aos passantes palavras de amor.  É tamanha a importância de São Francisco para a doutrina cristã que há quem o chame de o "Segundo Cristo".  Uma curiosidade: Santo Antonio, religioso português muito amigo de Francisco, à sua ordem serviu como pároco da cidade de Pádua, na Itália.  Antonio era tão bondoso e fazia tantas curas que já em vida era chamado de "il santo" por seus paroquianos, e não por Padre Antonio.
Dez séculos depois (ou cinco mais cinco) a história se repete: atolada em episódios escabrosos como os dos padres pedófilos e escândalo do Banco do Vaticano, um papa antevê a necessidade de uma atuação rigorosa e pede inspiração a São Bento.  Alquebrado por problemas de saúde, pelo dito 'fogo amigo',  e sem disposição para enfrentar a situação árdua, Bento XVI renuncia num ato de humildade, e chega o jesuíta Francisco I com a missão de enfrentar o que deve ser enfrentado e de renovar o que deve ser renovado.  
Para mim, a prova que é possível a renovação é o fato de ser a fé que sustenta a Igreja e que há séculos a vem sustentando.  E a fé cristã se funda na ideia de renovação que a ressurreição de Cristo encerra (como dizia São Paulo, "se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria a nossa fé").  É dizer: se não se acreditar na renovação, nada faz muito sentido.  E todos nós sabemos, cristãos ou não,  que 'ressucitamos' muitas vezes na vida, que muitas vezes a temos que renovar.   
Penso às vezes nos santos como pessoas comuns e gosto deles pela santidade adquirida, por tanta renúncia em suas vidas e tudo de transformação que trouxeram ao mundo com ousadia e paixão.  Ontem, ao ouvir na oração de São Francisco a passagem que diz que é dando que se recebe, calculei que esse singelo aforisma talvez resuma o maior desafio de Francisco I - fazer com que a Igreja saiba dar mais do que receber, saiba compreender mais do que ser compreendida, saiba amar mais do que ser amada. Depois pensei que se tivesse sido escolhido um brasileiro viria a calhar adotar o nome de Antonio - porque também aí, dez séculos depois, a história se repetiria.


p.s. quem sabe um dia uma Papisa é eleita e vem a escolher o nome de Teresa em homenagem a Santa Teresa D'Ávila, fundadora da Ordem das Carmelitas e grande mística e revolucionária? Os revolucionários de ontem, as ditas pedras angulares, têm se revelado, numa manobra da ironia do destino, o sustento de hoje.