segunda-feira, dezembro 15, 2014

o que só a presença revela

Impossível, ou improvável, ou suspeita a percepção de charme numa pessoa com quem nunca se esteve. Ainda que se possa nela ter notado alguma inteligência, ou graça, ou cultura, coisas tácteis justamente por assim serem não se rendem à obviedade desses tempos fluidos, tempos que supostamente prescindem da presença física.  É como dizer que um homem cheira bem sem jamais ter tido com ele proximidade, ou de sabê-lo com pele macia sem tê-lo tocado - ainda que tocado sem querer, ainda que tocado por uma fração de segundo. Não, não há como se perceber, é mesmo impossível calcular. Tampouco é possível gostar do sotaque desta pessoa ou da sua voz ou de sua forma de falar sem jamais ter estado com ela. De gostar, por exemplo, da inflexão que tem ao contar uma piada, de gostar do seu jeito de rir, de sorrir, de arquejar as sombrancelhas.  De gostar de como gesticula, ou de como não gesticula.  De gostar de como hesita em fazer uma revelação e de depois, ao fazê-la, de como é tão despudoramente confessional. De como se senta, de como caminha essa pessoa quando vai distraída, de como pausa uma frase para prestar atenção a um passarinho que canta numa árvore próxima. De como  não percebe o mundo ao redor quando está na presença de um afeto, de como não ignora a roupa com que sua companhia naquele preciso dia está vestida. De como se despe. De como lida com sua própria nudez, de como admira a nudez alheia.  De como dirige seu carro em noite avançada sem nenhuma pressa. De como seu olhar fixa num ponto para resgatar da memória uma lembrança remota.  Da forma que come, que bebe.  De como - por que não? - se lambuza desajeitadamente tomando um sorvete num dia quente de dezembro.
Dessas coisas todas, e de outras mais tácteis ainda, é bem disso que estou falando.

terça-feira, outubro 07, 2014

o bolsa bolsa

Estive na Inglaterra em 1982 para estudar inglês.  Fiquei dois meses numa pequena cidade chamada Bournemouth, frequentei uma boa escola e me hospedei com uma família inglesa no bucólico bairro de Talbot Woods.  Até hoje me lembro do endereço - 6, Dulsie Road - e da casa que era a mais modesta da melhor rua do melhor bairro da cidade.  Havia uma crise na Inglaterra punk no início dos 80's. Emergentes, meus landlords eram jovens, faziam um super esforço para melhorar de vida e apenas por essa razão recebiam estudantes em casa - quem conhece um pouco os ingleses sabe que não são lá muito chegados a hóspedes. Minha landlady era uma pessoa legal, nem tanto meu landlord, e me apaixonei pela filha deles, uma doce e educada menina loura de quatro anos de idade e com cabelos compridos até o meio das costas. Nicholas Michelle era seu nome, mas tomei a liberdade de chamá-la "beautiful" como seus pais a chamavam.  Era muito fofa.  Eu tinha 19 anos e a entretinha brincando de boneca e lendo histórias, mesmo que com o sotaque que tentava sem muito sucesso aprimorar.  Para ir a escola eu andava 20 minutos a pé, porque num frio de 20 graus negativos não dá para ficar parado esperando o ônibus. Era tão frio, mas tão frio, que antes desse gelo todo só o inverno de 1968.  Há pessoas que até hoje se lembram do gélido inverno europeu de 82.  Um dia, voltando da escola, num friaca de doer os ossos, vi uma fila comprida na agência de correios que terminava na rua. Estranhou-me o fato de na fila só haver mulheres, todas muito bem vestidas. Quando cheguei em casa, minha landlady se queixou justamente do frio que sentira na fila dos correios.  Que coincidência! Soube então o porquê desse flagelo todo: era o dia do pagamento de um benefício que todo mês as mulheres com filhos recebiam do Estado Britânico. Bastava ter um filho, não importava a classe social.  O valor do benefício era o mesmo para todas. A razão do pagamento do benefício para uma terceiramundista como eu era bizarra.  Segundo ela, as mulheres britânicas não sabiam muito bem quanto os seus maridos ganhavam, de forma que aquele dinheiro era para elas próprias ou para seus filhos, como decidissem. Poderiam gastar no que desejassem.  Como eu havia comprado uma bolsa naquele mesmo dia no valor aproximado do benefício, perguntei-lhe se com ele poderia ter comprado... uma bolsa. "Sim, claro!", respondeu-me taxativa.  Poderia comprar o que bem entendesse.
Pensei no 'bolsa bolsa' dia desses e me ocorreu pensar por que será que mais de 30 anos depois alguém reclama de se ter instituído o bolsa família para os pobres no Brasil, um país que, ainda hoje, persiste rico para os ricos e pobre para os pobres. 

quinta-feira, junho 19, 2014

Vila Maria, Bicho de Pé e a verdadeira teoria da redução de complexidade





“Por que facilitar se é tão simples complicar?”, perguntou o jurista. Já ia tarde o seminário e havia meros gatos pingados, eu incluída, numa última palestra de último dia.  Quem resiste a uma maratona de dias sem fim com palestras longuíssimas rodeado de advogados e seus indômitos celulares?  Aquele finzinho era uma quase-benção e então contava o jurista (uma figura ímpar, culta e muito divertida) sobre sua primeira causa, cuja defesa, em 40 laudas, caprichava nas teses.  Confiante, perguntou a um ex-professor seu, juiz aposentado, o que dela achava, recebendo como resposta uma lição lapidar: “muito boa, mas nenhum juiz vai ler uma defesa de 40 páginas. Acho que merece uma redução de complexidade”, tendo pronunciado ‘redução de complexidade’ com as vogais bem abertas, já que o jurista era baiano. Dias depois ainda repercutia em mim aquela frase que, primeiro, virou um aforisma meio de brincadeira e, depois, uma espécie de teoria para tudo na vida. É isso, nada de sofisticações desnecessárias. Tem que ser justo. Tem que ser preciso.  Tem que ser simples. 
Desde então, não duvido estar diante de algo fadado ao sucesso quando me deparo com a materialização dessa teoria.  Foi o que me aconteceu ouvindo e vendo a banda Bicho de Pé: está tudo ali, tudo o que precisa haver de instrumental e vocal, verdadeira mmbb (música muito boa brasileira).  Dá vontade de ouvir até não mais poder.  Uma identidade tão grande senti que me dei conta que a brasilidade sopra de onde quer e alcança o que nem sempre espera (no caso eu mesma, carioca da gema, que me apaixonei pela banda do novíssimo ritmo 'xoxote'). O mais curioso é que a tal teoria da redução de complexidade, tão rara de acontecer, veio num só dia em dose dupla - horas antes, havia visto “Vila Maria”, peça em cartaz no Teatro Gonzaguinha até o fim do mês. Texto, direção e atores na justa medida da perfeita harmonia, como uma boa peça de teatro deve ser. Bem concebida do começo ao fim, vai fluindo redonda até fazer a plateia sentir pena quando acaba.  Essa teoria é tão escassamente vista na dramaturgia e, no entanto, bastam bons atores, um bom texto e uma boa direção.  Como tampouco são banais uma mulher bonita sem nenhuma maquiagem ou um corpo bem feito em que nada sobra e nada falta.
Confesso que foi um refrigério ver que ainda existe gente que percebe haver uma imensa força na simplicidade da cultura brasileira.  Foi mesmo redentor encontrar artistas que não quiseram reinventar a roda para revelarem ao mundo como são bons, como são geniais.   

Acho que foi uma benção, sobretudo, porque os tempos cá em Terras Brasilis andam para lá de complexos.    

sábado, abril 26, 2014

em plena entressafra existencial, o carnaval

Se mudanças são complicadas, mais ainda são entressafras existenciais. A intercessão do nada que passou e do nada que ainda não aconteceu é um vácuo absurdo, que não será preenchido pela teoria dos conjuntos.  Mas consegue ser pior, porque, como o diabo, finge que não existe.  Então você está tocando a sua vida e súbito percebe que está aprisionado por sua própria displicência consigo mesmo.  Aconteceu-me há anos atrás.  Não me dei conta que o carnaval se aproximava e até hoje me intriga o fato de ter perdido os comentários sobre alguma eventual opção. Para onde planejavam ir as pessoas ou mesmo quem haveria de ficar no Rio naquele tempo em que o carnaval se resumia ao desfile da banda de ipanema, às escolas de samba na sapucaí e aos bailes gay, foi como se nada tivesse sido dito.  Não me dei minimamente conta.  Estava, depois de anos, desacompanhada.  E, o pior dos mundos: não tinha uma amiga entressafrada como eu, um amigo disponível, um amigo gay querendo alguma folia.  Não tinha cachorro. Não tinha casa, porque a dos meus pais estava sendo pintada (foi mesmo há anos atrás) e eu estava hospedada com familiares.  Que, naturalmente, tinham planos para o carnaval e que sem problemas teriam neles me incluído se eu...bem, se eu os tivesse ouvido.  Tendo passado o mês de janeiro rapidamente (e não sei o que não fiz naquele mês), chegou fevereiro e lá pelas tantas acordei em pleno sábado de carnaval.  Sozinha, com a geladeira meio vazia. Porém, como o passar do tempo nem sempre é ingrato, lá pela segunda-feira apareceu alguém e rolou uma companhia para ir ao menos até o bar lagoa. Agora, se naquele tempo tudo me passou desapercebido por que raios eu fui me lembrar disso justo neste momento? Talvez porque pensei em escrever essas maltraçadas no carnaval, que já passou, e também porque hoje realizei que já passaram a quaresma e a Páscoa e - incrível! - semana que vem tem o feriado do dia do trabalho.