segunda-feira, julho 31, 2006

Das Delicadezas e de suas Estranhezas

Não atino bem a razão de me haver ocorrido só hoje pensar numa frase de Blanche Du Bois, personagem de “Um Bonde Chamado Desejo” de Tennessee Williams, depois reproduzida por Pedro Almodóvar na personagem vivida por Marisa Paredes em “Tudo Sobre Minha Mãe”: “sempre dependi da gentileza de estranhos”. E me ocorreu também que, das duas vezes que ouvi esta singela frase, dita por estas duas personagens em momentos tão oportunos, tive o sentimento de estar diante da genialidade daqueles dramaturgos, um por tê-la concebido, outro por tê-la relembrado. E também por estar diante de um fato da vida.
Porque é fato que as delicadezas nem sempre vêm de quem se espera.
E talvez porque, ao contrário do que se pensa, nem sempre a delicadeza é compreendida.
O caso é que por duas vezes fui tanto objeto quanto sujeito de inusitadas, porque inesperadas, delicadezas.
Uma delas aconteceu no Aeroporto de Congonhas, numa sexta-feira em que estava exasperada para voltar para casa, cansada do trabalho pesado de um longo dia, adensado em aridez por ter exigido deslocar-me pelo caos daquele trânsito paulistano várias vezes, louca por alcançar o vôo cujo último assento conseguira por um golpe do destino. Bem na hora de entregar o cartão de embarque, já ali no portão, cadê? Sumira. Assim, do nada, ele não estava mais no compartimento externo de minha bolsa, onde deveria esperar-me incólume. Desaparecera.
Ao que, de imediato, dei meia-volta, o coração já na boca, e, um pouco adiante, uma figura diminuta, um nissei, dirige-se a mim resoluto e, com o braço estendido, me oferece aquele passaporte para a redenção. Eu só olhava para o cartão desde que o avistara na mão daquele homem. E este homem, ao me entregá-lo, o retém um pouco, o suficiente para que eu o olhasse com mais vagar. A entrega do cartão não foi sua única oferta: ele me comunicou, eu percebi perfeitamente, que eu estava precisando de paz. E também percebeu que eu agradeci imensamente o recado, pois recebi o cartão de forma algo solene.
A outra foi dia desses, quando ajudei uma pessoa a atravessar a rua. Do nada, percebi, como se o vento me houvesse dito, que aquela hostilidade urbana humilhava de tal forma aquela pessoa que ela não conseguia atravessar a rua. Dei-me conta, esperei o sinal de novo, atravessei e simplesmente perguntei se queria ajuda, e queria, e muita. Foi bastante simples, não carecia de perguntas, tampouco de respostas, nem uma nem outra foi feita ou dita. Um simples atravessar de rua.
E o que mais me impressionou foi de saber precisamente o que angustiava aquele coração. E talvez ninguém próximo a esta pessoa tenha se atentado que ela não poderia estar naquele lugar desacompanhada; mas estava, e claramente sofria por estar.
Senti um certo conforto em pensar que sim, é deliciosamente estranha a delicadeza quando vem de um estranho. E um tanto de desconforto ao pensar que não, nem sempre é familiar a delicadeza quando vem de um próximo.

domingo, julho 30, 2006

"uma imagem vale mais do que mil palavras...


... mas sem palavras isso não seria dito."

pérola de Millôr Fernandes, dentre as muitíssimas suas que se ouve em "Millôr Impossível", de Eduardo Wotzik, em cartaz no Teatro Café Pequeno
(charge do próprio, ele por ele mesmo)

chuva

a chuva lava e livra
do impuro a atmosfera
e a nuvem se adensa,
espera
torna a precipitar.

esta chuva que lava
me livra
de tolices, quimeras
quem dera
do resto poder me livrar.

domingo, julho 23, 2006

o caos da sexta-feira de toda semana

Eu não consigo entender porque a cidade do Rio de Janeiro dá um nó às sextas-feiras. Não compreendo não haver um único guarda para organizar o trânisto que neste dia costuma ser mais caótico do que nos demais. Escapa-me a razão de o trânisto, além de caótico, ser tão hostil. De haver animais ao volante de vans e afins. De os motoristas de ônibus (em tese profissionais) desrespeitarem com especial prazer as regras básicas da condução - um sinal vermelho na Avenida Presidente Vargas, por exemplo. Em todos os lugares do mundo a hora do hush é alvo da atenção das autoridades. Não aqui. Aqui fica-se à própria sorte.
E porque as pessoas se esbarram nas ruas e não pedem desculpas? E qual a razão de não se entender um pedido de licença? E porque se joga lixo no chão? Céus, porque há pessoas que cospem nas ruas?
É muito atraso.
Muito terceiro mundo.
Tem horas que eu odeio morar no Rio.

quinta-feira, julho 20, 2006

A Verdadeira História das Tetas Cabeludas

(a pedidos e bem atrasadinha, aí está a verdadeira história das tetas cabeludas, singela tentativa de reprodução do relato de seu protagonista, e a solução do caso).

Sinto uma mão me alcançar pela cintura e um bafejar no pescoço: “Bonequinha de Luxo”, o que me fez, de imediato, já tendo reconhecido a voz, girar e disparar “Abusado!”. Um amigo das antigas – a justificar, portanto, estes estranhos tratamentos - quanta saudade. Tantos anos sem nos ver, muita coisa para contar, não poderia imaginar que, entre as novidades, estivesse seu divórcio: para mim, seu casamento era daqueles vocacionados à eternidade, tamanha afinidade. Essas coisas, às vezes, me fazem perder um pouco da esperança.
Disse ele que não houve jeito e, a despeito de haver deixado para trás sua vida para acompanhá-la quando designada para servir no exterior, lhe foi impossível manter vivo o casamento. Foi-se, esvaiu-se, escorreu por entre os dedos. Chorou muito ao ler uma carta que havia escrito à sua mulher no dia do casamento chamada “compromisso dos dez respeitos”, porque o primeiro item, o mais importante segundo seu entendimento, já não existia mais, “o interesse pela vida do outro”. Ali percebera que o divórcio era inevitável, haviam se distanciado e não atinavam o porquê. Acontecera. Choraram muito ao resolverem se separar. E no dia da assinatura do divórcio resolveram que deveriam sair para dançar, e dançaram, e se embebedaram; bêbados, choraram de novo. Depois disso, nunca mais se viram. Aí seus olhos marejaram e os meus também.
Começou, então, a pensar na vida e percebeu, após algumas saídas com amigos, que não era de todo mau estar de novo solteiro e, principalmente, que era muito bom estar de volta ao Rio. Sentiu-se um pouco só no início, depois ciscou aqui e ali e acolá e logo percebeu que muita coisa havia mudado, não no mundo propriamente, porque o mundo não lhe tinha passado desapercebido naqueles últimos tempos em que estivera fora, mas nas mulheres, porque as hondurenhas não lhe despertaram muito interesse. E tinha convivido apenas com hondurenhas por bons seis anos.
Percebeu que as mulheres haviam se tomado de um “ar” e davam uma importância demasiada a si mesmas. Havia nelas também uma empáfia, além de estarem todas muito cabotinas. Percebeu também uma mudança física tremenda, muito magras, muito fake. Mutantes. Sim, mutantes e aí é que entram as “tetas cabeludas”.
Tudo começou com uma jovem senhora (ele diz jovem senhora) que conhecera no prédio em que trabalha. Vai daqui, vai dali, encontros casuais no elevador, tal e coisa, um convite para almoçar, outro para jantar, vai indo, quase evoluindo para um fim de semana juntos até que um dia, sentado defronte a ela num jantar, percebe que sua boca havia mudado. De um dia para o outro aquela boca de lábios finos e levemente nervosos cedera lugar a lábios carnudos, densos. Lentos. O quase-caso termina rápido ali mesmo: ela vai ao banheiro ao fim do jantar e, ao voltar, o encontra de cabeça baixa, o olhar fixo à mesa. Recebe um "não" à sua pergunta se estava tudo bem com ele e a informação de que ele precisava ir imediatamente embora, não se sentia bem. Partiu sozinho. “Nunca mais a procurou?” perguntei, “Não”, disse ele, “Por causa da boca nova?” indaguei, com estranhamento, “Sim”, afirmou, “Aquilo me afligiu, não poderia mais beijá-la. Fiquei desolado, gostava dela, mas não pude evitar”.
A este se seguiram casos similares. Uma outra jovem senhora que subitamente perdera parte de sua expressão (parece que em decorrência de algo que se injetara, uma toxina, não se lembrava bem do nome, algo que soube depois ser muito popular, mas não conseguira ouvir toda a explicação e quase desfalecera enquanto ela, com riqueza de detalhes, falava daquela maravilha da medicina moderna) também não foi mais procurada, assim como igualmente não o foi aquela que, num belo dia, apareceu com as maçãs do rosto salientes, fruto de algo também injetável, duas pirâmides perfeitas a apontar para o céu. O quarto caso da série fake aconteceu com a irmã de uma amiga sua com quem estava saindo, mas neste caso quem levou o fora foi ele. Perguntou se ela cortara o cabelo e ela havia colocado cabelo.
Ficou com medo das mulheres e, sobretudo, das coisas a que consensualmente se submetiam.
Quando já estava bem desanimado conheceu Bela, uma mulher fora do comum. Grisalha, com uma cabeleira hirsuta e uma leve imperfeição no lábio, bronzeada porque ainda se permitindo o vício do sol, perfumada, inteligente, divertida. Linda. Já separada e em vias de formalizar o divórcio, como ele também se readaptando ao Rio, pareceu-lhe simplesmente perfeita. Dizia coisas que nunca lhe ocorrera pensar, muito original. Reiteradas vezes afirmou que queria se livrar de tudo, tudo o que lhe incomodava, tendo este processo se iniciado dois meses antes com a decisão de se separar.
Era só conversa e cinema e chopp e jantar e teatro até que um dia a coisa pegou fogo na casa dela. Ora, normal. Ela hesitou um pouco, ele insistiu, ela cedeu. Beijos ardentes, uma maravilha, evoluíram para as preliminares. Etc. Etc. Ele interrompe seu relato e me olha com uma expressão marota. “E aí?”, pergunto eu, odiando o fato de ser geminiana e ter esta curiosidade incontrolável. Aí ele diz que, já na cama, sentiu uma coisa estranha nos lábios, como cócegas. Algo aflitivo. “É, é?”, falei, arquejando a sombrancelha. “Eu estava beijando seus seios”, disse ele, sabendo que matava minha curiosidade. “E o que você fez então?”, disparei. Contou que então se levantou e foi ao banheiro para depois ter um ensejo de acender a luz. E eis que ele se deparou com as tais tetas cabeludas. “Como cabeludas?” perguntei, já iniciando aquele inevitável frouxo de riso que se apodera de mim quando sinto constrangimento no lugar dos outros. “Totalmente cabeludas”, disse ele com ar contrito, “Você não faz idéia. Pelos imensos, finos, super longos, nos dois mamilos. Eram tantos que os cobriam totalmente. Pelos pretos em contraste com a pele branca dos seios. Nunca havia visto nada igual”. Falava com uma expressão de horror e como se buscasse em mim (logo em mim) alguma explicação para o tal fenômeno. Saí dizendo que nunca havia visto nada semelhante nos seios, mas que existiam métodos muito eficazes de depilação. Esta hora foi um horror, porque tive um frouxo de riso mortal, que o contaminou. Retomado o fôlego, disse ele: “Aí está o problema. Resolvi sugerir que ela buscasse alguma solução, uma porra de uma toxina, um injetável, um troço laser, e ela me respondeu que passou anos se mortificando com a pinça, pois bastava apontar um ponto preto nos mamilos para ter que imediatamente o retirar, seu ex-marido tinha horror daquilo. Aliás, não admira que tivesse... (aqui eu ri de novo, mas logo me controlei). E por tudo isso é que tinha se separado e que agora era uma grisalha feliz, que tomava sol à vontade, comia carne, falava merda, gargalhava e que queria se livrar do que a incomodava e do ranço opressor que a subjugara anos a fio e blá blá blá. Um discurso com o qual concordei inteiramente”. “Bem”, disse eu, “se é assim, você vai ter que se acostumar com as tais tetas”. “Jamais!”, exclamou. “Então, é um impasse, “Pois é, pois é...”, disse pesaroso, “é um impasse, porque ainda estamos juntos e eu gosto muito dela. Nunca uma mulher me divertiu tanto”.
Cinco dias depois, ele me liga meio na correria dizendo que agradecia imensamente meu presente e que sua vida estava ótima, pois havia resolvido o problema das tetas cabeludas que o tornara um insone há dias. Eu havia lhe mandado um super soutien gorge preto da Victoria's Secret para que ele a presenteasse, algo que me pareceu óbvio para o caso. Já na hora do quando a gente se vê de novo e tal ele me faz lembrar o porquê daquele apelido que lhe dei anos atrás: “herr, hã, vem cá, eu preciso te perguntar... você é 100% orgânica?”.
Se isso é pergunta.

A Terra Vista do Céu



Não deve haver nada mais lindo.

(à esquerda a Sicília e à direita a península italiana. Foto: Agência Espacial Européia)

domingo, julho 16, 2006

45º do Segundo Tempo

Nunca o tinha visto tão quieto por tanto tempo. Se antes esboçava algumas palavras e formava frases vagas, agora era raro até mesmo ouvir algum ruído seu. Sua expressão também estava absorta em algum lugar, perdido o pensamento em algum ponto que jamais se saberia qual. Havia o flagrado algumas vezes sentado em sua cadeira de rodas com o olhar levemente ascendente, como se procurasse alguma lembrança, como se tentasse fazer com que lhe viesse à tona algum fato que o ligasse ao homem que fora um dia.
Meu pai. Nem tão idoso assim, mas desde que acometido pela doença da abstração, como eu chamava aquele odioso mal de alzheimer, era como se estivesse morto. Sim, eu sepultara meu pai naquele preciso momento em que recebi, naquele tarde, naquele consultório médico, o diagnóstico de sua doença. Tudo o que veio depois foi outra pessoa e nunca mais tive sua presença na minha vida. Tive que aprender a amar outro homem, em muito distante daquele alegre e forte por que chamava de pai. E confesso que, para mim, foi difícil ter que amar diferente a mesma pessoa. Mais ainda porque meu pai virara meu filho.
Meu filho. Tão diferente de mim e de seu pai, que às vezes eu me perguntava se tinha mesmo saído de dentro de mim. Mas sim, aquele garoto comprido de cabelo black-power era meu e, até onde eu pudesse supor, filho de seu pai declarado - sempre tive boa memória e não me esqueceria de um homem com que me houvesse deitado. E ele, que sempre achara graça naquela distração do avô, naquela infância extemporânea, até ele andava meio alarmado com tanto silêncio. Junto com a avó às vezes cochichava pelos cantos, gentil tentativa de não me preocupar mais ainda.
Minha mãe. Sábia, ela. Sofreu um tempo, emagreceu, secou mesmo, depois se abstraiu do problema e foi cuidar da vida, o que incluía algumas viagens em excursão. Voltava alegre e contando as novidades, sabendo que de tudo eu me ocuparia e que, se houvesse algum problema mais sério, a mandaria buscar. Achava bom que ela cultivasse sua leveza, sempre nos foi um refrigério.
Naquele domingo, porém, notei que a expressão de meu pai mudara, e nada tinha daqueles esgares estranhos, tampouco daquela indiferença. Ele sorria. Esticando o pescoço em direção à janela, ele sorria. Ele se alegrava. Não tardou e percebi que ouvia o jogo transmitido pelo rádio de um vizinho. Um jogo de futebol entreouvido pelo rádio, ora veja. Falei com meu filho, que se informou sobre o campeonato e ali decidi que levaria meu pai à final no Maracanã. Ninguém se admirou e, como num pacto silencioso, a “operação maraca” foi minimamente planejada.
O barulho da turba em dia de final de campeonato estadual, num clássico Fla-Flu, não era brincadeira, era de se arrepiar até a alma. Empurrando uma cadeira de rodas, então, cercada de pessoas selecionadas para a empreitada – porteiros, vizinhos, acompanhante e folguista – foi inusitado. Nunca fomos convencionais mesmo.
Meu pai de início se assustou, depois começou a sorrir e enrubesceu algumas vezes com as tentativas de gol de ambos os times. Quando um deles marcou um gol, ele entendeu que se tratava do time adversário e fez uma expressão contrariada. Ele estava se dando conta. Em cinco anos, nunca o tinha visto assim. E quando, finalmente, seu time, o eterno Flamengo, virou o jogo, ele vibrou. Ele vibrou por duas vezes e, por duas vezes, gritou “gol!” com todo o seu vigor de outrora.
Ao final do jogo, antes um pouco de irmos embora, a trupe toda, ele me fez um sinal e abaixei para ouvi-lo dizer: “O seguinte: Garcia, Tomires, Pavão, Jadir, Dequinha, Jordan, Joel, Rubens, Índio, Esquerdinha ou Babá e... e... Evaristo? É Evaristo mesmo? Ando tão ruim da memória...”, ao que indaguei, sem entender nada: “O quê, pai?”, e ele me respondeu: “Esse time aí não está com nada. Esse é que era o time. Campeonato de 53. Você sabe, sou rubro-negro-roxo.”
Eu sempre soube que ele espantaria seu fastio. No 45º minuto do segundo tempo, ele finalmente conseguiu.