domingo, julho 16, 2006

45º do Segundo Tempo

Nunca o tinha visto tão quieto por tanto tempo. Se antes esboçava algumas palavras e formava frases vagas, agora era raro até mesmo ouvir algum ruído seu. Sua expressão também estava absorta em algum lugar, perdido o pensamento em algum ponto que jamais se saberia qual. Havia o flagrado algumas vezes sentado em sua cadeira de rodas com o olhar levemente ascendente, como se procurasse alguma lembrança, como se tentasse fazer com que lhe viesse à tona algum fato que o ligasse ao homem que fora um dia.
Meu pai. Nem tão idoso assim, mas desde que acometido pela doença da abstração, como eu chamava aquele odioso mal de alzheimer, era como se estivesse morto. Sim, eu sepultara meu pai naquele preciso momento em que recebi, naquele tarde, naquele consultório médico, o diagnóstico de sua doença. Tudo o que veio depois foi outra pessoa e nunca mais tive sua presença na minha vida. Tive que aprender a amar outro homem, em muito distante daquele alegre e forte por que chamava de pai. E confesso que, para mim, foi difícil ter que amar diferente a mesma pessoa. Mais ainda porque meu pai virara meu filho.
Meu filho. Tão diferente de mim e de seu pai, que às vezes eu me perguntava se tinha mesmo saído de dentro de mim. Mas sim, aquele garoto comprido de cabelo black-power era meu e, até onde eu pudesse supor, filho de seu pai declarado - sempre tive boa memória e não me esqueceria de um homem com que me houvesse deitado. E ele, que sempre achara graça naquela distração do avô, naquela infância extemporânea, até ele andava meio alarmado com tanto silêncio. Junto com a avó às vezes cochichava pelos cantos, gentil tentativa de não me preocupar mais ainda.
Minha mãe. Sábia, ela. Sofreu um tempo, emagreceu, secou mesmo, depois se abstraiu do problema e foi cuidar da vida, o que incluía algumas viagens em excursão. Voltava alegre e contando as novidades, sabendo que de tudo eu me ocuparia e que, se houvesse algum problema mais sério, a mandaria buscar. Achava bom que ela cultivasse sua leveza, sempre nos foi um refrigério.
Naquele domingo, porém, notei que a expressão de meu pai mudara, e nada tinha daqueles esgares estranhos, tampouco daquela indiferença. Ele sorria. Esticando o pescoço em direção à janela, ele sorria. Ele se alegrava. Não tardou e percebi que ouvia o jogo transmitido pelo rádio de um vizinho. Um jogo de futebol entreouvido pelo rádio, ora veja. Falei com meu filho, que se informou sobre o campeonato e ali decidi que levaria meu pai à final no Maracanã. Ninguém se admirou e, como num pacto silencioso, a “operação maraca” foi minimamente planejada.
O barulho da turba em dia de final de campeonato estadual, num clássico Fla-Flu, não era brincadeira, era de se arrepiar até a alma. Empurrando uma cadeira de rodas, então, cercada de pessoas selecionadas para a empreitada – porteiros, vizinhos, acompanhante e folguista – foi inusitado. Nunca fomos convencionais mesmo.
Meu pai de início se assustou, depois começou a sorrir e enrubesceu algumas vezes com as tentativas de gol de ambos os times. Quando um deles marcou um gol, ele entendeu que se tratava do time adversário e fez uma expressão contrariada. Ele estava se dando conta. Em cinco anos, nunca o tinha visto assim. E quando, finalmente, seu time, o eterno Flamengo, virou o jogo, ele vibrou. Ele vibrou por duas vezes e, por duas vezes, gritou “gol!” com todo o seu vigor de outrora.
Ao final do jogo, antes um pouco de irmos embora, a trupe toda, ele me fez um sinal e abaixei para ouvi-lo dizer: “O seguinte: Garcia, Tomires, Pavão, Jadir, Dequinha, Jordan, Joel, Rubens, Índio, Esquerdinha ou Babá e... e... Evaristo? É Evaristo mesmo? Ando tão ruim da memória...”, ao que indaguei, sem entender nada: “O quê, pai?”, e ele me respondeu: “Esse time aí não está com nada. Esse é que era o time. Campeonato de 53. Você sabe, sou rubro-negro-roxo.”
Eu sempre soube que ele espantaria seu fastio. No 45º minuto do segundo tempo, ele finalmente conseguiu.

11 comentários:

Anônimo disse...

Que bacana, hein!!! Isso é um conto ou aconteceu de verdade? Em qualquer um dos casos, está lindo.

Denise S. disse...

Tê, é ficção e, sinceramente, espero não estar vaticinando nada, já bastou a vovó. Eu havia remetido para o caderno "Prosa e Verso" do Globo, para a edição de "Contos do Rio" deste ano, cujo tema era futebol. Escrevi no último dia, às pressas, em 20 minutos. Como não fiquei entre os finalistas, e tinha que ser algo inédito, postei aqui apenas agora. Que bom que vc gostou. bjs

Denise S. disse...

Teresa, desculpe a intimidade "Tê", achei que era uma amiga minha. Pardon.

CrissMyAss disse...

Denise, muito legal.
De vez em quando eu apareço sim, é que nem sempre comento, desculpe. Nem por isso deixe da aparecer lá, hein!
Vai ver que coisa TOSCA o post de hoje.
Vou falar pro Fernando Cals vir aqui ler seu conto, ele é "gagá" pelo Flamengo também.

Anônimo disse...

Endosso as palavras da teresa.
D. Que texto lindo!
bj's

Anônimo disse...

Fora as brincadeiras lá na Criss, aposto que já lí esse post mais vezes que tu.
Seria vergonha dizer que choro, mesmo querendo que o Flamenguinho de teu pai se rebente?
Strix, com um upa.

Anônimo disse...

O choro é uma manifestação incontrolável e não é nenhuma Suzane (sei lá das quantas) que vai fazer com que eu consiga controlar minhas emoções. Se fosse assim, teria matado meus pais só prá lacrimejar diante das câmeras da "Grobo". Se a outra matéria (conto) é melhor que tua manifestação não me interessa.
São apenas recordações avivadas de meu pai, que, como eu e a Rainha dos cefálopodes, torcia pelo Fogão.
Um upa.
Strix.

Denise S. disse...

pode crer, Strix. Curioso que não escrevi isto com emoção, mas ficou um texto emotivo. E olha que é ficção.

Frederico disse...

Denise, achei claramente que era realidade... mas a realidade tantas vezes é ficção e vice-versa, não é mesmo?... independente disso, é uma história bonita que me marejou os olhos e me fez pensar (sem saber que você havia mandado para O Globo) que era boa história para um livro de crônicas. Está de parabéns (as always). :-)

Anônimo disse...

Oi, Denise,
e faltou o goleador Benitez, naquela linha:
Joel, Rubens, Indio, Benitez e Esquerdinha. 1953, campeões!
E viria o tri, com o mago Dom Fleitas, à frente.
Beijos
fernando cals

Denise S. disse...

Fernando, é isso mesmo, Benitez no lugar de Evaristo, o velho se enganou. A história é ficção, mas não a repetição, ad nauseam, deste dream team. Uma vez Flamengo...