quarta-feira, outubro 07, 2015

a história de Cupido

Os anjos não têm sexo, todos sabem.  Rectius: quase todos.  Há uma milésima percentagem que, desafiando a sina outorgada pelo Altíssimo, aqueles que na versão humana recebem a qualificação de recessivos, têm sexo - masculino, feminino, e (por que não?), terceiro sexo. Cupido nasceu do sexo masculino, um lindo anjo de bochechas coradas que, ao chegar a adolescência, percebeu-se diferente de seus pares (ímpares?) no coro a que pertencia.  Não se sentia bem daquela forma; sentia ultimamente as asas diferentes, pesadas, os vôos haviam ficado mais curtos e já não tinha nenhuma motivação para cumprir as ordens que recebia dos Arcanjos.  Arrastava-se pelos ares, refestelava-se preguiçoso pelas nuvens e, quando lhe destinavam um posto de guarda em reforço ao anjo titular, morria de tédio.  Então, quando as coisas já estavam caminhando para um caso raro de depressão angélica, recebeu um torpedo que lhe dizia para procurar sua "cara metade".  Não fazia ideia do que era aquilo, mas não foi difícil descobrir.  Difícil seria conseguir permissão para procurar a tal cara metade.  Sim, era possível a um anjo com sexo procurar seu par, contanto que autorizado. Venceu bravamente as várias instâncias e, diante Dele, tímida, mas resolutamente, pediu permissão. Conseguiu-a, ao mesmo tempo em que foi advertido de que apenas poderia ter vida conjugal se sua eleita também o quisesse.  Do contrário, seria imediatamente revertido à condição que naturalmente deveria ter e que, por acidente, não tinha - a dos anjos assexuados.       
A tarefa de encontrar sua cara metade não era fácil, porque eram poucos os anjos com sexo e haveria de ser alguém que também o quisesse.  Vasculhou a imensidão do universo de todas as formas, tocou suas trombetas, fez sinais de fumaça, cantou em todos os coros que encontrava pela frente.  Despiu-se de sua timidez e tédio e superou-se a si próprio.  De uma coisa tinha certeza: se não a encontrasse, certo era que não seria mais o mesmo.  No mínimo, subiria na hierarquia angélica.  Quando menos esperava, a encontrou: linda, pura, com asas translúcidas e olhar triste. Um sonho, um sonho de criatura. Mas... ela não o quis. De nada adiantaram suas românticas investidas, suas serenatas e sinfonias. Ela declarou, com seus lindos olhos tristes rasos d'água, que tudo era perfeito, mas que nada tocara seu coração. Não era ele a sua cara metade.
Cupido resolveu que não procuraria mais ninguém.  Conformou-se a ser um anjo sem sexo, mas não quis nunca mais cumprir as ordens que lhe davam.  Fez a Deus um último pedido e foi atendido - o de passar a eternidade ajudando os humanos a encontrar seus pares.  Para que elas, as felizardas criaturas que nascem com sexo, tentassem ser felizes como ele não pôde ser. 
Desde então, continuam todos tentando, Cupido e humanos.