sábado, outubro 14, 2006

a utopia de um tio-avô


Ele me fala das coisas de sua fazenda, achando graça em minha pergunta sobre quantos quilos um pé de café é capaz de produzir, mostra-me o que foi recentemente roçado, o barranco que caiu adiante, a reforma que fez na casa, os bezerros recém nascidos e seu melhor touro. Circunda toda a sua propriedade em seu fusquinha-branco-expresso, subindo e descendo aquelas montanhas lindas de doer. Que saúde.
Acende a iluminação do terreiro do café à noite e para lá me despacha, dizendo, com ligeiro sarcasmo, que não devo temer os cachorros, basta pedir a São Roque, que de mim os afastará. Seria um pecado perder aquela noite estrelada; portanto, que vá ao terreiro dar umas voltas e digerir o jantar. Logo.
Ama sua mulher e sua família com vigor e doçura. Não é sempre que se vê isto quando, sendo hóspede, se irrompe a intimidade dos anfitriões. E o silêncio não lhe pesa, como tampouco à minha tia; significa, apenas, um certo cansaço do dia que começou com a aurora.
Ouvi-lo me chamar “ô, menina!” é música para meus ouvidos. Não que eu não me sinta uma, antes muito pelo contrário - é assim que me sinto amiúde e me admira ser constantemente tratada por “senhora” - mas aquele “menina” é tão sincero que um dia, ao lhe revelar minha satisfação por receber um tratamento que considero tanto verdadeiro (oh, imodéstia!) quanto incomum, recebi em resposta uma reação sua lapidar: “ora, mas se você nasceu ontem de quem nasceu anteontem...”
A verdade é que isto só poderia mesmo vir de um tio-avô, de um tio-avô muito querido, que compartilha comigo a idéia de ser uma diletante nesta vida (o somos todos), porque só um tio-avô tão dileto poderia me explicar coisas que ignoro achando que é suposto que as ignore. Porque depois dos quarenta parece que de tudo e de todos se deve saber.
Sua generosidade, porém, faz ser verdade a utopia de que carrego e carregarei vida afora a criança que temporalmente fui um dia.
Afinal, eu nasci ontem e meu pai, anteontem.
A benção, Tio Zezé!

7 comentários:

Frederico disse...

Tio Zezé é, sem dúvida alguma, um homem como só se fazia comum nos velhos tempos. Ainda os há (e aparecerão) mas são escassos. Esse ambiente e quadro me fizeram lembrar Lendas da Paixão. // Sua foto, num outro dia, não te dá mais de 20 e poucos anos.

Anônimo disse...

Vinte e poucos anos e linda.

Denise S. disse...

thanks, rapazes!

Anônimo disse...

Denise, eu também sou tio-avô, ainda que um pouco mais novo, já que caçula de família numerosa. Mas isto não vem ao caso. Só de ver a foto do seu tio dá uma vontade imensa de bater um papo com ele. Pessoas assim são valiosas, raras, têm de ser cultivadas. Como disse o Frederico "... é um homem que só se fazia comum nos velhos tempos..." Daria um belo livro.

Fico bastante impressionado, Denise, com o seu modo simples e objetivo de escrever, sem que se perca um ponto sequer de sensibilidade e muita emoção.
Nada mais a dizer.
Um abraço do seu novo leitor assíduo
Adelino (sem blog...)

Anônimo disse...

"(...) Sua generosidade, porém, faz ser verdade a utopia de que carrego vida afora a criança que temporalmente fui um dia." (Denise Sollami).
Não é apenas a generosidade de seu tio que faz verdadeira uma utopia, Denise. Ela só faz reforçar a realidade de que todos nós, queiramos ou não, teremos sempre em nosso íntimo a criança que fomos um dia. Poucos, porém, por inibição, preconceito ou vergonha, têm a felicidade de descobrir a tempo esta grande realidade.

Ricardo Rayol disse...

Que homenagem mais linda Denise!

Anônimo disse...

linda mesmo!