sexta-feira, maio 08, 2020

Viralizou!


Ganhei a rua cedinho, como era o previsto.  Às seis da manhã já caminhava em direção ao meu destino final; caminhava em passos largos, e assim não tardei em chegar à rua principal do meu bairro.  Havia bastante gente tendo o dia mal irrompido, todos caminhando silenciosos.  Tudo indicava que caminhávamos ao mesmo destino.  Uma multidão silenciosa, solene.  Parei para respirar, perdi o fôlego rápido.  Entreouvi os sinos das duas igrejas próximas badalando ao mesmo tempo, num ritmo alternado.  Detive-me para ouvir melhor e recuperar-me um pouco.  Confesso que estranhei imenso.  Muitos meses sem ouvir um sino.  Muitos meses sem ver gente na rua.  Num bar.  Num restaurante.  Numa igreja.  Num cinema, num parque.  Um silêncio mórbido se abatera sobre a cidade, sobre o país, sobre o planeta.  Era um silêncio que destilava dor.  Naquele tempo de reclusão, eu vira poucos transeuntes nas raras vezes que saí à rua.  No começo havia mais gente.  Depois, apenas mascarados no supermercado, na farmácia, na máquina do banco.  Pouco a pouco, a presença dos mascarados era mais e mais rarefeita.  Muitos certamente haviam morrido.  Não via sorrisos há tempos tampouco.  Foram meses, meses que se alongaram silenciosos, ansiosos, tristes.  O tempo segurando o tempo, pulsando angústia e incerteza.  O tempo se arrastando sem ninguém saber o que viria a seguir.  O silêncio era a tristeza. Como era mesmo a vida antes?  Temia esquecer. 

A segunda onda fora pior, muito pior.  A boa nova anunciada logo evanesceu.  A cidade se fechou ainda mais antes de reabrir.  Havia tanto terror na súbita mutação do vírus que já então infectara milhões de pessoas e ceifara milhões de vidas.  A mutação viera mais letal.  O que fazer ante àquele anúncio?  Nada dera real conta do Covid-19, quem dirá do Covid-20.  Era como se fosse o primo irmão de uma bomba atômica arrebatada sobre todos – e em tempos de paz.  Sim, uma paz imposta pela pandemia mais letal que o planeta havia visto desde tempos imemoriais.  Seria impossível haver guerra, os soldados estariam mortos antes de alcançar as trincheiras.  Muitos já haviam morrido, aliás.      

Sentimento estranho o de ser uma quase-sobrevivente, porque sobrevivente da própria biografia.    

Percebi então que o céu estava azul, azul de doer.  Fazia sol na minha cidade. E eu podia caminhar sem máscara e sem medo. Eram seis e meia da manhã e senti uma ponta de felicidade no peito.  Felicidade.  Alegria.  Liberdade.  Como era a vida antes mesmo? Não podia esquecer.

No quê exatamente se transformara a vida naquele tempo era difícil precisar.  Basicamente, a vida dependia de uma conexão à rede.  Era zoom, whattsapp e que tais. Acordava-se já na rede.  Era o jeito.  E nem se dar mais ao luxo de ignorar as notícias era possível, porque a primeira vez que ouvira as sirenes tocar sem saber a razão – me havia dado ao sacrossanto luxo da leitura naquela tarde, e apenas leitura - me apavorei.  Ainda ouviria as sirenes tocar muitas vezes.

A terceira onda viera aterrorizante.  Pessoas morreram às pencas, as morgues e os cemitérios estiveram cheios.  A capacidade de mutação do vírus era tamanha que os tratamentos para o Covid-19 não muito serviram para o Covid-20, e menos ainda para o Covid-21.  A velocidade da mudança vinha sendo prenunciada pela ciência para a mudança climática e ali tudo indicou haver um vínculo entre esses fenômenos.  Era o preço pago pelos ouvidos moucos feitos aos apelos renitentes dos cientistas, esses seres desprezados pelos negacionistas que naquele tempo dominaram o cenário político.  A negação cobrou seu tributo: os negacionistas morreram quase todos na segunda onda; os restantes, capitularam.  Um certo presidente de memória nada saudosa morreu e de sua família não se ouvia mais falar.  Talvez estivessem mesmo mortos. Se não estavam, queriam estar.

Chego à Lagoa e ouço mais um badalar de sinos.  Descendo Botafogo, logo alcançarei a Praia do Flamengo e o Aterro.  Lá diziam me esperar.

Fora apenas uma resposta à uma corrente dessas de rede social: o que você propõe para o primeiro dia após a fim da pandemia?  Eu tinha sede da vida táctil.  Muita sede e fome.  Propus uma terapia do abraço num lugar público bem amplo e lancei: “Proponho um abraçaço no Aterro do Flamengo de manhã bem cedo”.  Que se abrace quem se encontrar pela frente, deixe-se estar no tempo que quiser o abraço durar.

O post virou um recorde com um milhão, quinhentos e vinte e sete mil repostagens.  Viralizou.  Não era crédito meu, não era um lampejo de inteligência, mas a tradução do sentimento que reinava meses depois da decretação da pandemia pela OMS, ainda nos tempos do Covid-19.

Porque não seria o abraço dos afogados.  Seria, enfim, o abraço de nós, os sobreviventes.


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