segunda-feira, outubro 23, 2023

sobre o luto

O luto é estranho, mas que não o estranhe - todo mundo passa por ele.  É uma tristeza que fica lá, à espreita, subjacente a todos os momentos do dia e, quando uma lembrança espoucar na mente, artimanha da memória talvez sádica, talvez aleatória, mas sempre necessária, o coração vai doer, e talvez venha uma lágrima, ou talvez venham muitas, e nem sempre vai ser possível disfarçar. 

Quando acharem que vc está bem, será quando você estará pior, porque ali o esforço para prosseguir estará sendo enorme.

O tempo muda no luto - ou a percepção dele. Ficam os dias morosos, enquanto as semanas voam.

O luto é sólido na dor, líquido nas lembranças, gasoso no que se esvai.  É um estado da matéria tanto quanto um estado da alma.

Todo luto tem também um pouco dos lutos precedentes.  Mas quem se acostuma com a dor?

O luto é estar nas mãos de Deus, sentir-se ligado ao que os olhos não enxergam e ao que o coração não duvida.  

O luto é o encontro do inevitável, da sina de todo ser vivente sobre a Terra, a reafirmar que a vida é aqui, agora, nos encontros que vamos tendo, casuais ou não.

O luto é um divisor de águas - os que estiveram e estão por perto, os que preferem não se envolver.  Ele é solitário como toda dor, mas não precisa ser um abandono.

E, o peito doendo, quando menos se esperar, uma alegria vai teimar em aparecer, porque a alegria dos entristecidos é até mais alegre.

O resto, é o tempo.








Na foto, meu pai, já no fim da vida, mas ainda não doente.  Ele havia se encontrado com uma amiga minha na rua casualmente e ela fez esse registro, que é bem a expressão dele. 

terça-feira, julho 06, 2021

gentil visita às seis da manhã

Há exatos cinco anos atrás recebi a gentil visita de senhores e senhoras que bateram à minha porta às seis horas da manhã.  Entraram abrindo as gavetas, levantando almofadas, mexendo em tudo.  Não tive medo, mas quase morri de susto.  Aliás, quase mesmo.  A dita visita poderia ter sido evitada - uma carta, um ofício seriam bastantes.

Mas não.  O circo à época montado demandava a cena.  Não impedi, não embaracei, fiz o que me pediram.  Até hoje a coisa se arrasta.

Antes de se cunhar a expressão "cancelamento", fui cancelada.  Fui também a primeira advogada a ter o seu ofício criminalizado.

Em 2016 eu tinha 32 anos de formada.  Uma reputação construída com muito, muito esforço e luta. Como doeu.  Ainda dói.

E dói porque não terminou, a coisa se arrasta.  É tão insignificante que se arrasta, esquecido em algum escaninho empoeirado.  "É a pandemia", dirão alguns.  Não, não é a pandemia.  É algo que não deveria nem ter começado a existir, mas, já que começou, que não tardasse em acabar.

Tenho minha consciência tranquila, sempre terei. E aqueles que provocaram todo esse horror, de uma forma ou de outra, certamente consciência é algo que não têm.  



sexta-feira, maio 08, 2020

Viralizou!


Ganhei a rua cedinho, como era o previsto.  Às seis da manhã já caminhava em direção ao meu destino final; caminhava em passos largos, e assim não tardei em chegar à rua principal do meu bairro.  Havia bastante gente tendo o dia mal irrompido, todos caminhando silenciosos.  Tudo indicava que caminhávamos ao mesmo destino.  Uma multidão silenciosa, solene.  Parei para respirar, perdi o fôlego rápido.  Entreouvi os sinos das duas igrejas próximas badalando ao mesmo tempo, num ritmo alternado.  Detive-me para ouvir melhor e recuperar-me um pouco.  Confesso que estranhei imenso.  Muitos meses sem ouvir um sino.  Muitos meses sem ver gente na rua.  Num bar.  Num restaurante.  Numa igreja.  Num cinema, num parque.  Um silêncio mórbido se abatera sobre a cidade, sobre o país, sobre o planeta.  Era um silêncio que destilava dor.  Naquele tempo de reclusão, eu vira poucos transeuntes nas raras vezes que saí à rua.  No começo havia mais gente.  Depois, apenas mascarados no supermercado, na farmácia, na máquina do banco.  Pouco a pouco, a presença dos mascarados era mais e mais rarefeita.  Muitos certamente haviam morrido.  Não via sorrisos há tempos tampouco.  Foram meses, meses que se alongaram silenciosos, ansiosos, tristes.  O tempo segurando o tempo, pulsando angústia e incerteza.  O tempo se arrastando sem ninguém saber o que viria a seguir.  O silêncio era a tristeza. Como era mesmo a vida antes?  Temia esquecer. 

A segunda onda fora pior, muito pior.  A boa nova anunciada logo evanesceu.  A cidade se fechou ainda mais antes de reabrir.  Havia tanto terror na súbita mutação do vírus que já então infectara milhões de pessoas e ceifara milhões de vidas.  A mutação viera mais letal.  O que fazer ante àquele anúncio?  Nada dera real conta do Covid-19, quem dirá do Covid-20.  Era como se fosse o primo irmão de uma bomba atômica arrebatada sobre todos – e em tempos de paz.  Sim, uma paz imposta pela pandemia mais letal que o planeta havia visto desde tempos imemoriais.  Seria impossível haver guerra, os soldados estariam mortos antes de alcançar as trincheiras.  Muitos já haviam morrido, aliás.      

Sentimento estranho o de ser uma quase-sobrevivente, porque sobrevivente da própria biografia.    

Percebi então que o céu estava azul, azul de doer.  Fazia sol na minha cidade. E eu podia caminhar sem máscara e sem medo. Eram seis e meia da manhã e senti uma ponta de felicidade no peito.  Felicidade.  Alegria.  Liberdade.  Como era a vida antes mesmo? Não podia esquecer.

No quê exatamente se transformara a vida naquele tempo era difícil precisar.  Basicamente, a vida dependia de uma conexão à rede.  Era zoom, whattsapp e que tais. Acordava-se já na rede.  Era o jeito.  E nem se dar mais ao luxo de ignorar as notícias era possível, porque a primeira vez que ouvira as sirenes tocar sem saber a razão – me havia dado ao sacrossanto luxo da leitura naquela tarde, e apenas leitura - me apavorei.  Ainda ouviria as sirenes tocar muitas vezes.

A terceira onda viera aterrorizante.  Pessoas morreram às pencas, as morgues e os cemitérios estiveram cheios.  A capacidade de mutação do vírus era tamanha que os tratamentos para o Covid-19 não muito serviram para o Covid-20, e menos ainda para o Covid-21.  A velocidade da mudança vinha sendo prenunciada pela ciência para a mudança climática e ali tudo indicou haver um vínculo entre esses fenômenos.  Era o preço pago pelos ouvidos moucos feitos aos apelos renitentes dos cientistas, esses seres desprezados pelos negacionistas que naquele tempo dominaram o cenário político.  A negação cobrou seu tributo: os negacionistas morreram quase todos na segunda onda; os restantes, capitularam.  Um certo presidente de memória nada saudosa morreu e de sua família não se ouvia mais falar.  Talvez estivessem mesmo mortos. Se não estavam, queriam estar.

Chego à Lagoa e ouço mais um badalar de sinos.  Descendo Botafogo, logo alcançarei a Praia do Flamengo e o Aterro.  Lá diziam me esperar.

Fora apenas uma resposta à uma corrente dessas de rede social: o que você propõe para o primeiro dia após a fim da pandemia?  Eu tinha sede da vida táctil.  Muita sede e fome.  Propus uma terapia do abraço num lugar público bem amplo e lancei: “Proponho um abraçaço no Aterro do Flamengo de manhã bem cedo”.  Que se abrace quem se encontrar pela frente, deixe-se estar no tempo que quiser o abraço durar.

O post virou um recorde com um milhão, quinhentos e vinte e sete mil repostagens.  Viralizou.  Não era crédito meu, não era um lampejo de inteligência, mas a tradução do sentimento que reinava meses depois da decretação da pandemia pela OMS, ainda nos tempos do Covid-19.

Porque não seria o abraço dos afogados.  Seria, enfim, o abraço de nós, os sobreviventes.


terça-feira, dezembro 03, 2019

como um pilão


tá tudo socado lá dentro
bem socadinho
o que senti e ressenti
queria ver se nascia algo novo
nesse pântano socado no peito

ô peito que sente, droga de peito que sente demais
e que não sabe o que fazer com essa droga
de sentimento das coisas demais

terça-feira, setembro 03, 2019

um ano depois...

... posto esses dois textos.  Incrível que não tenha me dado conta do tempo que fiquei sem passar por aqui e mais incrível ainda que apenas agora me dei conta que as histórias que tenho são de pessoas que se foram esse ano - Domingos de Oliveira, João Gilberto e, mais recentemente, Fernanda Young.  Depois falo dela. 
Que ano, meu Deus.

Domingos e os Meninos


Domingos de Oliveira morreu e só agora me dei conta. Que estranho, a morte sempre me impacta logo e tanto, ou será que em algum momento deixou de impactar e não percebi? Essa reação tardia me é estranha. 

Não era sua amiga, quem sou eu. Encontrei com ele um dia no aniversário da minha amiga Leila Meirelles, eles, sim, eram amigos. Fiquei sem graça de pedir para tirar uma fotografia com ele, então tirei dele depois de silenciar o telefone, mas acho que ele percebeu, que de bobo não tinha nada.

Eu adoro seus filmes. E de um em particular, porque me fez ver o menino que todo homem nunca deixa de ser - e depois disso confesso ter passado a ver os homens de outro jeito. 

Assisti “Juventude” no dia 25 de dezembro de 2008 às 16:00 hs com mais meia dúzia de 3 ou 4 pessoas na sala. O filme foi em diversas passagens aplaudido em cena aberta. Todos éramos fãs dele, ou não estaríamos no dia de Natal à tarde assistindo um filme de Domingos de Oliveira. Que tratava de 3 amigos que se encontram para festejar o aniversário de um deles e estão impressionados com a chegada dos 70, a idade do “você está ótimo”. Tendo percebido que meu psi estava também pasmo com os 70 que em breve completaria, dei o dvd pra ele de Natal na sessão de terapia seguinte. Ele amou o filme, disse que tinha sido o melhor presente daquele Natal.

A conversa que o filme nos trouxe sobre o tempo, as idades, e sobretudo sobre o menino que todo homem nunca deixa de ser nos rendeu senão a mais intensa e densa sessão de análise, certamente uma delas. Para nós dois, aliás.

Domingos era, ele mesmo, um menino, um menino travesso, arteiro e apaixonado pelas mulheres, que me fez entender os homens um pouquinho mais, porém um pouquinho que me deu conforto e redenção. Foi com esse filme que relembrei a menina que sou sendo já mulher e a menina que também nunca vou deixar de ser. Somos umas crianças na versão adulta, uma versão que o tempo concede, e não a idade. É estranho, mas é isso, sem tirar, nem por.

Quem sabe, Domingos, não nos encontramos num pátio de recreio? Será que se eu tiver coragem de te chamar pra brincar você brinca comigo, menino?

João


Olho a última foto de João Gilberto no jornal hoje, dois dias depois de sua morte. Depois da inundação na rede de homenagens mais que merecidas a um gênio da raça - que abençoada uma pessoa que entra para a história pelo bem que fez - aquele olhar dele me dilacerou.

Não que seja difícil dilacerar meu coração. Não em particular quando tento manter ainda vida num coração que ultimamente parece senão em cacos, bem craquelado.

O olhar - aquela expressão em seu olhar - reconheço nos meus velhos, os que já partiram e em alguns que por aqui ainda estão.

É um olhar de espanto, de espanto com o que está diante dele - o mundo. Há um espanto ínsito ao envelhecer, ao acumular anos à própria existência. Ignoro se é pelo fato de se estranhar ainda se estar por aqui depois de tanto tempo, se é porque o mundo se tornou um lugar estranho. Minha bisavó Mathilde, sempre tão alegre, e que partiu aos 103 anos de idade em casa sem dor ou agonia, um dia me disse que “era muita vida vivida”. 

Não é estar no mundo, é em que mundo se está. 

Com a velocidade da mudança a cada dia maior, me inundou um enorme medo, e não apenas por mim, mas pela minha geração que aqui anda tão frustrada. Estamos ainda pensantes e pulsantes, mas correndo da imensa roda da vida que nos alcançará. 

A ideia da morte nunca me pareceu má e nunca a vi como o oposto da vida, mas do nascimento. Não existe vida sem morte, tampouco morte sem vida.

Existirão, porém, anos no porvir sem tanto espanto?

segunda-feira, setembro 03, 2018

na roça

Vou pra roça com meu pai.  Quero ouvir o silêncio que dá um quase zumbido nos ouvidos, ler um livro sem ser interrompida, ficar ao abrigo da reverberação das más notícias.  Quero ter ao menos uma daquelas longas conversas com ele que meio que nos emocionam (sobretudo quando trazem  lembranças dos que já se foram), meio que acertam alguma ponta pendente, ou, se não acertam, mal também não fazem.  Vou ver o que o jardim trouxe de novo nesse último par de meses, ver os animais, tomar banho de rio, andar a cavalo, e com sorte chegar até o sertãozinho, onde há lindas e imensas bromélias nativas. Quero ficar despojada dessa bravata que virou viver nessa cidade.  Achar graça de ter que subir o morro para tentar uma vez por dia pegar um sinal de celular e, com sorte, acessar a internet.  Quero ir ao quilombo São José e ter dois dedos de prosa com alguém de lá que certamente sabe quem eu sou sem que eu jamais tenha me apresentado.  Sou urbana, eminentemente urbana, mas amo o mato e gosto de mim quando estou lá.  
Fico mais doce.  Talvez, mais eu.

segunda-feira, agosto 06, 2018

presente

O arboreto me abriga em sua paz
É domingo.
Mal não faz não pensar no tempo.
Ser do presente cativa,
saber que é só o que tenho
há de bastar. Haveria de me bastar
junto com a saudade que subjaz
ao domingo, ao jardim e à paz.

quarta-feira, maio 02, 2018

pagãos

É saudade e saciedade
da ausência nossa
e episódica presença
tudo o que nos vem por consequência
da nossa própria inconsequência

(talvez tardia e reiterada adolescência?)


Uma coisa sem dúvida rara

e certamente densa,
que todavia se fez do nada.
Será o permitir-se uma autoindulgência?

Quem sabe é a descoberta

do tal mágico instante
- o instante que a si se basta - 
pelos deuses de tempos em tempos ofertado
ao mortal assim resignado,
ao que no arco da vida
segue já em sua inflexão

(talvez um quê de transgressão?)


Somos nós: apenas nós

dando-nos um ao outro
o melhor de nós dois.
Somos nós, enfim: os que
ousam se despudorar,
os que se querem
- sobretudo se sabem - 
bárbaros, divinos pagãos.

terça-feira, janeiro 09, 2018

block is the new black

Percebi ter sido bloqueada no Instagram e não atino a razão.  Sendo alguém que conheço,  - mais precisamente quem considerava uma pessoa amiga - e se não tive um comportamento que minimamente possa ser interpretado como inconveniente, alguma coisa há.  Pergunto a pessoa diretamente via zap a razão daquela atitute - sim, sou curiosa - e ato contínuo a resposta já não me interessa.  Perdeu-me o interesse aquela pessoa por quem eu nutri um sincero afeto, que queria ver bem e feliz.  Sequer li a resposta. Estranho esse súbito desinteresse meu, logo eu jamais indiferente e sempre tão reativa, mas foi tão súbito quanto intenso.  Foi um super fenomenal foda-se.
Passado o pasmo inicial, engatei uma segunda e bloqueei eu mesma a pessoa que um pouco mais tarde veio a me desbloquear (se não percebo a razão da primeira atitude, menos ainda me convém agora saber a razão da segunda) e a surpresa do alívio que poucas vezes senti com tanta fervor foi inexplicavelmente intensa.  Ah, que maravilha bloquear.  Que coisa fascinante clicar sobre aqueles três pontinhos à direita e confirmar positivamente a mensagem que em seguida aparece indagando quase que in extremis se é isso mesmo que se quer fazer diante de tão nefastas consequências.  Sim, eu quero, querido aplicativo, eu quero bloquear.  Deixe-me bloquear. E não só quero como faço. E não só faço como o faço resolutamente e sem nenhum esforço além de clicar nos  tais três pontinhos e depois, hum, depois confirmar. Que coisa redentora saber que nunca mais verei quem a pessoa curtiu ou deixou de curtir em seguidores comuns; que alívio saber que desconhecerá meus passos dali pra frente.  Nada do que eu fizer estará a seu alcance, ignorará se estou aqui ou acolá, sozinha ou acompanhada, sobretudo por quem acompanhada, se de cara lavada ou não, se em minha cidade ou fora dela, se em minha rotina ou catapultada para um resort cinco estrelas que não se supõe como lá teria eu ido dar com os costados. Que poder este o do bloqueio.  Que maravilha este desinteresse que me contagiou como uma virose pestilenta de verão carioca devolvido neste simples gesto que se chama... bloquear.
Minha mais nova resolução de ano novo: bloqueie mais, mas bloqueie mesmo, sem dó nem piedade, bloqueie na vida online e fora dela,  que isto é mais do que poder, isto é mais alívio do que aquele redentor xixi da cerveja, isto é tão simples como na dúvida sobre o que vestir escolher aquele little black dress velho e bom de guerra que nunca fez feio em nenhuma ocasião.   
Eu não sabia, mas agora tenho certeza: block is the new black. Estou pronta para você, 2018.

P.S. a imagem, capturada do Google, é de Oprah Winfrey em seu emocionante discurso na 75a edição do Globo de Ouro, quando todos foram de preto em demonstração de repúdio ao assédio sexual e outros abusos pelos quais passam as mulheres.  Esta atitude agora me fez pensar que black is the new block.  Block neles!



terça-feira, dezembro 05, 2017

de novo, flor

o mundo me diz
ser distante do amor
quem quis, não quis

não há dor

a saudade partiu
o tempo em dois:
era antes, foi depois

agora descubro-me flor
em tardiva primavera

não há dor:
colheita à espera?

segunda-feira, julho 31, 2017

Decreto S/N

apenas quero o que seja fácil
nada que tome demasiado meu saco
que de resto não tenho
tampouco o tempo, que hoje um pouco até que sobra.

gente, trabalho, amor
venha o que for, mas que venha fácil
se for complicado, trabalhoso, cargoso 
desculpe, não quero
não é do meu desejo
tampouco do meu afeto
não é assim que mereço.

porque a essa altura eu sei: o complicado descaminha,
frustra, engendra caraminholas.

chega,
basta.
a hora é de descomplicar  


ainda que tardiamente, decretei hoje eu mesma: essa hora me chegou.

sexta-feira, maio 26, 2017

andarilho


o amor que vagueia andarilho
ao encontrar num porto misterioso seu abrigo
cruza a linha do desconhecido
estranha-se a si mesmo, deforma-se.  Dói.

tudo o que toca, transforma
será para melhor, será para pior?
não há respostas para esse andarilho
que tampouco perguntas fez ou faz

o andarilho diz se bastar em vagar
e que o porto sempre lhe será impermanente

quarta-feira, março 29, 2017

a trabalho

Mais um quarto de hotel em viagem de trabalho:
este tem vista pra montanha verde e uma cama decente.

Amanheceu hoje com sol,
o céu azul da serra bem limpo, lavado da chuva de ontem.

Sinto cheiro bom de café,
e o barulho dos vizinhos de porta que fazem um amor matinal.

Hora de levantar.

terça-feira, março 28, 2017

instante



Foi com um misto de espanto e medo
Que te vi desnudo e belo
Mostrando-te a mim sem segredo
Trazendo ao meu pudor tanto desejo.

Desejo imenso que ali nasceu
De um momento tão intenso
Ver-te tal qual menino  insolente
Trouxe à minha menina outro ensejo.

O destino ali nos quis
e quis tão denso, daquele inesperado jeito.
Com destino bem sei que não se brinca:
a ele e a ti, sem me entregar, inteiramente já me dei.

Mas não é a vida desatino?


Itaipava, 28 de março de 2017

segunda-feira, janeiro 16, 2017

Especula-se

Acordo com o despertador no sábado porque temia perder a hora e o compromisso estava agendado há dias.  Verifico se está tudo certo: as cinco vias impressas do contrato de locação, cujo conteúdo fora discutido na véspera com o interessado, meu primo, cinco envelopes, papel branco extra, caneta, caderneta de anotação e etc.  A isso se somava a roupa que iria usar depois num almoço de família que incluía piscina no clube, o que fazia com que também o biquíni, o filtro solar, o chinelo, a canga e etc estivessem separados.  Aparato feito, casa arrumada, pego meu carro e, rumo ao destino, procuro estacionar em Copacabana.  Ai de mim.   Tento contato com a pessoa com quem tenho o compromisso marcado, em vão.  Uma, duas, três ligações não atendidas, até que recebo um zap dizendo "vi que vc ligou", "mas me esqueci do compromisso, foi agendado faz tempo, na segunda-feira anterior" (curioso  que do dia em que o marcamos se lembrava), justificando a falta "porque não nos havíamos falado mais" (precisava?) e, finalmente, que estava passando por problemas de família e que não poderia mais alugar o apartamento. Ora, desistiu do negócio em que tanto insistira? Fui rápida em redarguir que, ao menos, deveria ter me avisado - um mero zap bastava - e que não é certo ocupar pessoas à toa.  Arrematei o "diálogo" dizendo que lhe faltava seriedade na vida.  Uma frase me lavou a alma e o trabalho, tempo e material desperdiçados: "falta de s e r i e d a d e".
Uma especuladora.  Aliás, mais uma, porque percebo o verbo especular sendo amiúde empregado ultimamente.  Não mais apenas em jogos de azar ou em outras apostas em que a roda da fortuna gira. Não, agora especular é mais amplo: da locação que já de antemão não se sabe possível, ou ao menos bastante incerta, ao relacionamento que se pretende amoroso derivado de uma fila que ora anda, ora desanda, mas que, sejamos francos, é fruto do exercício da mais pura especulação.  Deve haver algum charme na pergunta "vai que cola?" e mais ainda na resposta - porém não alcanço como se conjuga esse verbo impunemente envolvendo outras pessoas e negócios sérios. 
Para especular, e desde que me entendo por gente, é bom lembrar que existe um apontador do jogo do bicho a cada duas quadras no Rio de Janeiro e inúmeras lotéricas vendendo o sonho de consumo existencial de cada ser no planeta, até dos que não jogam, que é, sempre foi, ganhar uma aposta, ficar rico e nunca mais ter que trabalhar. Agora entendo bem o porquê da perenidade dos jogos de azar.
Há mais especuladores do que especulação nessa vida. 

quarta-feira, janeiro 11, 2017

ainda tinha tanta coisa

E ainda tinha o Jardim Botânico que conheço de cor, onde há lugares que ninguém sequer imagina, lugares de paz e silêncio impensáveis em pleno turbilhão urbano.  E também ir ao cinema e conversar sobre o filme, e ir a praia, porque o mar é paixão, e ouvir música em algum lugar, porque música abençoa o dia e embala os pensamentos.  E se não teria festas ao luar como o poeta prometeu à sua amada, alguma festa  haveria de ter, porque tem sempre alguém que festeja o aniversário e o ano, a cada 365 dias, irrompe em outro novo, e festejar e dançar sempre é bom.  Tinha a minha versátil coleção de músicas, muitas músicas, carradas de músicas, e também alguns bons filmes. E tinha também viajar, falar francês, conhecer algum lugar inédito, sentir frio, observar os costumes dos outros, ganhar um ponto de observação longe de casa e de lá pensar na vida que aqui se leva. 
E só precisava ter dado alguma liga, a atenção encapsulada em banais sinais de fumaça que hoje chamam de zaps, nada de mais, nada demasiado.  Era apenas como soprar um beijo com a mão espalmada na linha do queixo quando a saudade viesse à tona (e ela sempre vinha). Ou alguma tarde livre numa sexta-feira mesmo que fosse para não fazer nada, nada além de jogar conversa fora na varanda e ver e ouvir sorrisos. 
E era para ser simples e otimista, porque a vida sorri para os simples e otimistas - e ela nos havia sorrido generosamente.  Era para preencher, não para ocupar espaço.
Ainda tinha um bocado de coisa.

p.s. a foto capturei no Instagram

sábado, dezembro 31, 2016

a carta de 2016 para mim

Eu fui um ano de susto para muita gente e para vc em particular.  Não queria te assustar tanto e, de mais a mais, pensei que vc absorveria o impacto. Talvez tenha mal dimensionado sua inteligência. Não, não é bem isso - o que houve é que subavaliei esse seu coração crédulo.  Por que tanta crença? Acredite menos ou escolha outras crenças; escolha melhor em quem e no quê acreditar. Não seja a rainha da boa vontade, porque não dá título, nem dinheiro. Desconfie, garota.
Gostei, porém, de ver que que minha co-irmã sorte te deu uma força - vc teve alguns encontros pessoais e consigo importantes, profundos mesmo; está enveredando por um caminho que, afinal, sempre quis, e conheceu mais gente que em anos anteriores. Dessas pessoas novas algumas ficarão, outras tantas passarão, mas a esta altura fazer a triagem já não é tão difícil. Lembre-se que não há tanta disponibilidade para o bem-querer. Eu fui um ano divisor de águas e tem hora que é preciso.  Claro que dói, sei que doeu. É verdade que vc perdeu muita gente,  mas será que valia a pena a convivência ou apenas ocupavam espaço?  Não seja tola.  Desacredite um pouco, não há mal nisso. Não é pecado, garota.
Escrevo essa carta nesse meu último dia de existência porque não quero que vc pense em mim como anda pensando, tampouco que fale tão mal de mim como vem falando.  Deixa de bobagem.  Você já teve anos piores.  Aliás, teve uma sucessão deles, e sempre se virou.  Vc é esperta, garota. 
Os fogos de Copacabana vão me detonar no preciso badalar do relógio à meia-noite. Não vou virar abóbora, vou partir para sempre. Como tudo o que é vivo se esvai, no segundo seguinte já ninguém estará sob o meu pálio e, a despeito de todo esse  mimimi, provavelmente eu não entrarei para a história. Segure a onda, porque 2017 será o que terá que ser e fazer planos se concretizar nunca foi o seu forte.  Portanto, nada de planos para não se desapontar depois. Outros já te disseram, aliás Guimarães Rosa vaticinou, e eu vou te repetir: coragem, coragem, coragem. É apenas isso o que importa, é disso que vc precisa.  
E não perca de todo esse seu coração.  Um dia ele vai te servir, garota.





a foto é a mensagem de ano novo da Juliana Reis: um ano macio para todos nós!

terça-feira, dezembro 20, 2016

a girafa de novo

Tem alguma coisa que acontece no início de verão que altera a química do cérebro.  Não sou especialista, mas já tenho verões suficientes para fazer uma amostragem.  Se nós, humanos, somos pura química, e parece que somos mesmo, suspeito que o resultado do calor sobre os miolos durante o dia que à noite são resfriados pelo ar condicionado certamente tem um efeito lisérgico sobre o inconsciente. Sempre nessa época do ano me vêm sonhos estranhos.  
Essa noite, por exemplo, voltou a girafa.  Sim, a girafa, minha velha conhecida.  Ela sempre reaparece. Desta vez eu estava no metrô, ajudava um senhor a descer a escada rolante (por sinal, enorme) e, ao chegar na plataforma, havia muitos bichos circulando.  Todos os passantes se assustavam, menos eu, que os olhava com familiaridade. Deambulei aqui e ali e, então, a girafa se aproximou.  Ficamos cara a cara, como se fôssemos velhas conhecidas. Paradas, uma olhando para a outra, até que ela começou a ruminar, mexendo os maxilares num gesto de mascar chiclete. Olhávamos uma para outra na esperança de nos assegurar que éramos mesmo nós duas. O curioso é que... bem, éramos mesmo nós duas.  E eu nem me lembrava mais de sua presença episódica em minha intensa atividade onírica.   
Ah, o verão. E é só o começo. 



p.s. a foto é minha, clicada numa rua da Gávea após publicar este post. O que será que o sonho da girafa me quer acordar? 

segunda-feira, outubro 24, 2016

aquele tempo

ficou para trás aquele tempo
aquela gente
aquele lugar e todas as circunstâncias do tempo, da gente e do lugar
e ao contrário do pentimento que revela o desenho primeiro do artista
restou de tudo a pintura original, porém já muito evanescida
caída ao fundo de um desvão de memória recôndita

num lugar em que a tristeza se abriga para não mais se revelar.  

sexta-feira, agosto 19, 2016

na praia de burkini

"Women are the nigger of the world" afirmou John Lennon, de forma que hoje certamente seria considerada política e duplamente incorreta.  Ele tinha toda razão.  Não existe na história da humanidade - ou seja, na história da opressão e da dominação - nada que tenha escapado às mulheres.  Ontem a imprensa veiculou que mulheres de burquíni não serão mais toleradas nas praias francesas e a questão ganhou polêmica.  O premier francês, Manuel Valls, disse que as praias são espaços públicos e, como tal, não devem tolerar trajes que signifiquem  um "projeto político de contrassociedade" pela expressão da "subserviência feminina".  Já há alguns anos que a França não mais tolera burcas que cobrem o rosto  nos espaços públicos como medida de segurança, o que se compreende. Porém, o que está em jogo não é o uso dos trajes que cobrem a mulher inteira, mas o uso nas praias pelas muçulmanas de uma vestimenta fechada, como se fosse um vestido de manga comprida por cima de uma legging (foto abaixo).   
Ignoro se alcanço bem o conceito de "contrassociedade" propugnado por Valls, mas bem sei que não pensou ele que talvez ir à praia, ainda que de burquíni, já é um grande passo para as mulheres muçulmanas. A questão que parece a todos escapar, ao menos do que li até agora sobre o assunto, é que a "evolução" (coloco aspas porque não sei se a palavra é bem essa), melhor dizendo, o caminhar das sociedades não segue da mesma forma, tampouco parte dos mesmos valores. É certo que aquelas mulheres agora podem frequentar uma praia - e nela ter a bela experiência de um banho de mar - não ousavam fazê-lo há bem pouco tempo. Se chegarão a se desnudarem é outra coisa, coisa aliás irrelevante, porém não se discute que se não puderem ir vestidas como seus costumes permitem simplesmente não irão à praia.  Figure-se num calor infernal no norte da África ou mesmo nas cidades mediterrâneas em pleno verão olhando o mar sem poder banhar-se.  Como carioca, calculo sem dificuldade a tortura que seria. 
Então por que razão justo a Europa, e em particular a França que se diz tolerante, irá impor o código de vestimenta àquelas que, de forma tardia, alcançaram um lazer tão banal? Será difícil supor que se assim for delas será sumariamente suprimido um deleite que apenas agora conquistaram?              
No mundo inteiro, em anos de história, de uma forma ou de outra, tudo às mulheres acaba por virar opressão - até quando se afirma que a intenção é libertá-las.   
Valls, désolée, mas vc não me representa, tampouco as muçulmanas que diz querer "libertar".

p.s. será que Valls tentou deixar a ultradireita atônita com essa declaração? Seria a ambiguidade da sua declaração uma jogada política?

p.s2. Valls teria sido elegante se no lugar da infeliz declaração dissesse que se regozijava com o fato de as muçulmanas agora frequentarem as praias e que esperava um dia vê-las se vestindo de uma forma mais leve - e apenas isso.

p.s3. já pensou se aos portugueses, ao aqui aportarem em 1500, não tivesse sido permitido pelos índios banharem-se com seus camisolões? "Aqui só nu, como fazemos nós", teria sido o comando dos então donos das terras.  Passados mais de cinco séculos, continuamos nos vestindo. O toplesss, aqui, não pegou, e são poucas as praias de nudistas.

#napraiadeburquini


sexta-feira, maio 13, 2016

muitos trezes


Número intrigante, esse 13.  Foram 13 anos no poder o partido que atende pelo número 13, cuja credibilidade, que já vinha abalada, foi praticamente sepultada pela ação do juiz federal titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, o qual foi considerado a 13ª pessoa mais influente no mundo.  Para completar, hoje, considerado o primeiro dia útil após o afastamento da presidente - que, ao que tudo indica, não voltará ao cargo - é sexta-feira 13.  Intrigante, esse impeachment, completamente diferente do anterior, em que a honestidade do presidente era o ponto central da questão.  Agora não é o caso e, na prática, dadas as circunstâncias, acredito que seja a verdadeira instituição do parlamentarismo no Brasil. Intrigante, esse parlamentarismo instituído desta forma, sobretudo considerando que num passado nem tão remoto foi rejeitado pela população no plebiscito - a ideia de ter um governante eleito por voto direto foi sonho acalentado durante anos pelo povo e ninguém queria abrir mão dessa prerrogativa. Sem sofismas, o que se viu, de fato, foi a verdadeira queda do gabinete, com robespierres vociferando e bradando em alto e bom som que, à parte a polêmica das pedaladas fiscais, o conjunto da obra justificava tudo. Intrigante, esse novo ministério, o qual conta com investigados na operação comandada pela 13ª pessoa mais influente do mundo, titular da 13ª vara federal de Curitiba, que ajudou a defenestrar o partido de inscrição número 13 e que governou por 13 anos.
Nessa sexta-feira, 13 de maio, dia de Nossa Senhora de Fátima, acho que vou fazer uma fézinha.  Ando precisando sentir esperança.          

domingo, dezembro 13, 2015

sobre as marcas deléveis e a semana na inusitada política brasileira

Há duas coisas que não se compadecem da pós-modernidade: a caligrafia e a voz.  Duas marcas tão pessoais, tão particulares e tão indeléveis que estão se perdendo.  São poucas as ligações de telefone; a caligrafia, basicamente, inexiste.  No entanto, basta ler uma carta manuscrita que por alguma razão tenha sido guardada, ou um bilhete, ou uma anotação em agenda ou caderneta de telefone para se pressentir a presença de quem manuscreveu.  Da mesma forma, a voz, hoje reduzida àquelas pessoas da convivência mais íntima, a um entorno muito apequenado, cedeu a mensagens enviadas via aplicativos.  No lugar do calor de uma frase dita, e portanto ouvida, há fotos, mensagens, filmes. Mas nada disso substitui um pequeno bilhete manuscrito ou mesmo a voz de alguém.  O mundo digital substituiu muita coisa - mas substituiu muito mal. 
De outro lado, há coisas que permanecem - o péssimo nível da política nacional, por exemplo.  Na semana que passou, tão bem retratada na coluna de Arthur Xexéo desta semana, viu-se cenas de pugilato no Congresso, como por vezes se vê na Coreia (tenho boa memória), uma carta do vice-presidente à presidente que jamais seria digna de quem ocupa tão elevado cargo na República (algo infantil, do tipo "magoou" ou "estou de mal, come sal, na panela de mingau"), e por fim, mas não por último, uma Ministra de Estado  que, numa festa, ao não gostar de ser chamada de namoradeira por um político de escol, não titubeou: redarguiu com veemência e jogou-lhe o vinho que tinha no copo. 
Abstraído o inusitado da cena, tenho que admitir: Kátia Abreu, quem diria, você é das minhas -  gosta de tudo bem a vera.
  

quarta-feira, novembro 18, 2015

"Nós Sempre Teremos Paris"

Será que ainda teremos? 129 pessoas mortas e outras tantas feridas foi quase como morrer de susto.  Aliás, entendi o que se sente quando se diz ter quase morrido de susto.  Como alguém pode invocar o nome de Deus para uma matança como esta é algo que escapa à racionalidade até dos bem perversos, na presunção de que a perversão, como tudo na vida, tem lá a sua previsibilidade.  O que me choca no terrorismo é a exportação do conflito para quem não é parte dele, para quem não resolveu lutar, para quem, em suma, não tem nada a ver com o assunto.
Não que não sejamos globais, não que ignoremos o efeito borboleta, a teoria do caos, longe disso. Faz tempo que sabemos que somos um, que a nave é por muitos compartilhada, mas também que não é igualmente compartilhada.  Não somos iguais, tampouco a democracia é ditadura da maioria, e nada disso é novidade. Sequer inova um ataque terrorista de grandes proporções no primeiro mundo ocidental.
O inédito é que aconteceu em...Paris.  E com a crueldade típica do terrorismo de fazer de vítimas pessoas normais, como comensais à mesa e torcedores reunidos no estádio.  A sensação de "eu podia estar lá" é comum, porém não admira: todo mundo viaja o tempo todo para algum lugar.
A novidade é que aconteceu na Paris que não é mais a mesma Paris - e talvez por isso mesmo o parisiense tenha sido tão atingido.  Nesta hora em que se olha para dentro, certamente se perguntaram: no quê nos transformamos? Onde estamos, afinal? É um pouco como se sentir hóspede na própria casa ou como não se reconhecer ao se olhar no espelho. 
Faz tempo que a senhora elegante perdeu a elegância.  Aliás, ver o que é típico parisiense é quase como fazer um safári nas savanas e topar casualmente com uma onça depois de horas. A senhora mudou, perdeu em charme, em originalidade, em romantismo.  Não é mais bom abrigo para os apaixonados.  Não serve mais de cenário a uma lua de mel ou a encontros amorosos, como fez no passado.  
Paris não é mais a mesma. E desde o acontecido me dei conta que também eu não me sinto mais a mesma sem a Paris que, um dia, tive a sorte de experimentar.

quarta-feira, outubro 07, 2015

a história de Cupido

Os anjos não têm sexo, todos sabem.  Rectius: quase todos.  Há uma milésima percentagem que, desafiando a sina outorgada pelo Altíssimo, aqueles que na versão humana recebem a qualificação de recessivos, têm sexo - masculino, feminino, e (por que não?), terceiro sexo. Cupido nasceu do sexo masculino, um lindo anjo de bochechas coradas que, ao chegar a adolescência, percebeu-se diferente de seus pares (ímpares?) no coro a que pertencia.  Não se sentia bem daquela forma; sentia ultimamente as asas diferentes, pesadas, os vôos haviam ficado mais curtos e já não tinha nenhuma motivação para cumprir as ordens que recebia dos Arcanjos.  Arrastava-se pelos ares, refestelava-se preguiçoso pelas nuvens e, quando lhe destinavam um posto de guarda em reforço ao anjo titular, morria de tédio.  Então, quando as coisas já estavam caminhando para um caso raro de depressão angélica, recebeu um torpedo que lhe dizia para procurar sua "cara metade".  Não fazia ideia do que era aquilo, mas não foi difícil descobrir.  Difícil seria conseguir permissão para procurar a tal cara metade.  Sim, era possível a um anjo com sexo procurar seu par, contanto que autorizado. Venceu bravamente as várias instâncias e, diante Dele, tímida, mas resolutamente, pediu permissão. Conseguiu-a, ao mesmo tempo em que foi advertido de que apenas poderia ter vida conjugal se sua eleita também o quisesse.  Do contrário, seria imediatamente revertido à condição que naturalmente deveria ter e que, por acidente, não tinha - a dos anjos assexuados.       
A tarefa de encontrar sua cara metade não era fácil, porque eram poucos os anjos com sexo e haveria de ser alguém que também o quisesse.  Vasculhou a imensidão do universo de todas as formas, tocou suas trombetas, fez sinais de fumaça, cantou em todos os coros que encontrava pela frente.  Despiu-se de sua timidez e tédio e superou-se a si próprio.  De uma coisa tinha certeza: se não a encontrasse, certo era que não seria mais o mesmo.  No mínimo, subiria na hierarquia angélica.  Quando menos esperava, a encontrou: linda, pura, com asas translúcidas e olhar triste. Um sonho, um sonho de criatura. Mas... ela não o quis. De nada adiantaram suas românticas investidas, suas serenatas e sinfonias. Ela declarou, com seus lindos olhos tristes rasos d'água, que tudo era perfeito, mas que nada tocara seu coração. Não era ele a sua cara metade.
Cupido resolveu que não procuraria mais ninguém.  Conformou-se a ser um anjo sem sexo, mas não quis nunca mais cumprir as ordens que lhe davam.  Fez a Deus um último pedido e foi atendido - o de passar a eternidade ajudando os humanos a encontrar seus pares.  Para que elas, as felizardas criaturas que nascem com sexo, tentassem ser felizes como ele não pôde ser. 
Desde então, continuam todos tentando, Cupido e humanos.    

terça-feira, setembro 15, 2015

oscilante

a massa de ar quente resoluta
resiste à invasão bárbara da frente fria
faz do vento ardiloso mensageiro
de intrigante e cáustica armadilha

cede ao úmido uma quase-primavera
toma de cinza a manhã inteira
forceja sua presença pouco alvissareira
uma súbita e densa atmosfera

o pêndulo presume-se oscilante
como a nuvem que espero passageira
certo é haver semana demais
no cansaço desta sexta-feira

terça-feira, abril 14, 2015

Rio Nicolas Tours

Para quem quiser fugir do lugar comum do turismo no Rio, visite www.rionicolastours.com.br. Para pequenos grupos, com guia francófono. É genial! 

Guide privé francophone à Rio: visitez www.rionicolas.tours.com.br.  C'est genial!

terça-feira, março 03, 2015

A Carta de Deus

"Muito bem, Dona Fulana, um momento de decisão e vc não sabe exatamente que rumo tomar.  E vc nunca saberá enquanto não entender certas coisas a seu respeito.  Se vc tomou a decisão certa de escolher a profissão que escolheu, e o marido, e o divórcio, e a mudança de país e tudo o mais parace que não é questão.  Ótimo, assim não é a vida toda que está em xeque.  Ótimo? Não, péssimo. Uma coisa está ligada a outra, que está ligada a outra, que está ligada a algo que parece que nunca te ocorreu pensar.  Uma coisa que tem origem no seu irmão e na sua mãe. Ou melhor, em como vc se relaciona com eles.
E por que vc nunca se relacionou verdadeiramente com eles? Por que esta visão que seu irmão, por ser mais novo, é alguém "menor" e que, por isso, não compreende bem vc ou não entende as coisas da vida? Vc nunca percebeu que seu irmão sempre foi de uma fidelidade canina a vc, assim como a sua mãe, muito amorosa.  Vc preferiu vê-los como pessoas muito simples, não tão espertas ou inteligentes quanto vc.  Vc varreu os dois para debaixo do tapete e o fato de não ter tido no seu irmão e na sua mãe os melhores amigos que vc poderia ter fez com que vc estivesse agora nessa encruzilhada diabólica. A vida toda vc preferiu se relacionar apenas com seu pai que, vaidoso como vc, fez de vc, sua filha mais velha e muito esperta e muito inteligente, uma extensão dele mesmo.  Como vc errou.  Espero que não erre mais.       
Veja o seguinte: seu irmão e sua mãe quiseram estar perto de vc em todas as suas vitórias, assim como em todos os seus momentos mais difíceis.  Além de vc não ter permitido uma aproximação, vc os esnobou algumas vezes.  Por exemplo, não fez questão de estar aqui quando seu irmão se casou, não participou ativamente da doença de sua mãe, sequer estava aqui quando ela veio a falecer. Se disse surpresa com o rápido desfecho da doença.  Se estivesse a par da situação, saberia que eu a estava chamando rápido - é uma doença rápida mesmo. O casamento do seu irmão foi um dos poucos momentos de imensa alegria nessa família, porque todos adoravam o casal e eles demoraram a se decidir.  Foi o casamento mais alegre que já se viu, a familia e os amigos todos reunidos, coisa bem rara, mas vc estava muito ocupada pensando em sua tese de mestrado.  Uma bobagem, ainda havia muito tempo pra isso.  Eles também quiseram muito estar perto de vc quando vc se divorciou, porque aquele foi um momento de muita dor para vc, e vc não deixou que sequer chegassem perto, só falou com seu pai e ele nada disse para ninguém. Vc sequer informou o resultado que obteve com sua tese, pensou que eles não saberiam valorizar. Novamente, apenas falou com seu pai. Que esnobe.
Eu não escolho irmãos por acaso.  Vc tem muito a aprender com ele e até aqui infelizmente ele já aprendou com vc o que é uma amizade não correspondida.  De sua mãe não vou falar porque ela já não está mais com vcs e agora já é outro assunto.
Mas se vc acha que seu irmão é "menor", que ele tem pouco valor, que não fez grande coisa na vida, veja isso: ele tem uma mulher e um filho adoráveis.  Eles se amam muito e vivem imensamente felizes. Levam uma vida boa e estão satisfeitos.  Se vc acha que seu irmão é apenas um professorzinho do ensino médio, saiba que ele revolucionou as duas escolas em que trabalha e que é adorado por todos - alunos, pais, colegas, diretores.  Ele é um profissional hiper realizado, só que não liga para dinheiro ou para títulos.  Ele está mais interessado no processo das coisas do que no resultado que pode conseguir com elas. Se vai dar certo é outra história, ele gosta é de fazer.  Ele nunca ligou para ser popular, e no entanto sempre teve a admiração dos que o conhecem.  Vc pode ser popular, mas ele tem prestígio.   
Então, para resumir, é o seguinte: enquanto vc não se despojar dessas bobagens que fazem com que vc não perceba os verdadeiros afetos, quem se importa com vc realmente, quem te dá históriareal de vida, e não apenas suposto reconhecimento do seu "valor", outras situações como esta acontecerão e sempre será a mesma coisa: vc tomará a decisão que parece ser a melhor no momento para, mais tarde, perceber que confundiu tudo. 
Pense nisso."  

p.s. Gretha Kotisc postou no Facebook: "Olá amigos, estou escrevendo um projeto em parceria com Tamasha Theatre aui de Londres e queria lançar um desafio.  Imagino que vc está num momento muito difícil da sua vida, que o faz questionar qual direção tomar, e DEUS te nvia uma carta.  E eu pergunto, o que você gostaria de ouvir sobre si mesmo? Qual o conteúdo da carta que gostariam de receber? Aos que quiserem dividir comigo seus pensamentos e experiências enviem um email para g.vianadefigueiredo1@arts.ac.uk."  Foi o que eu fiz, a partir de uma fabulação minha, uma personagem que inventei.  


segunda-feira, dezembro 15, 2014

o que só a presença revela

Impossível, ou improvável, ou suspeita a percepção de charme numa pessoa com quem nunca se esteve. Ainda que se possa nela ter notado alguma inteligência, ou graça, ou cultura, coisas tácteis justamente por assim serem não se rendem à obviedade desses tempos fluidos, tempos que supostamente prescindem da presença física.  É como dizer que um homem cheira bem sem jamais ter tido com ele proximidade, ou de sabê-lo com pele macia sem tê-lo tocado - ainda que tocado sem querer, ainda que tocado por uma fração de segundo. Não, não há como se perceber, é mesmo impossível calcular. Tampouco é possível gostar do sotaque desta pessoa ou da sua voz ou de sua forma de falar sem jamais ter estado com ela. De gostar, por exemplo, da inflexão que tem ao contar uma piada, de gostar do seu jeito de rir, de sorrir, de arquejar as sombrancelhas.  De gostar de como gesticula, ou de como não gesticula.  De gostar de como hesita em fazer uma revelação e de depois, ao fazê-la, de como é tão despudoramente confessional. De como se senta, de como caminha essa pessoa quando vai distraída, de como pausa uma frase para prestar atenção a um passarinho que canta numa árvore próxima. De como  não percebe o mundo ao redor quando está na presença de um afeto, de como não ignora a roupa com que sua companhia naquele preciso dia está vestida. De como se despe. De como lida com sua própria nudez, de como admira a nudez alheia.  De como dirige seu carro em noite avançada sem nenhuma pressa. De como seu olhar fixa num ponto para resgatar da memória uma lembrança remota.  Da forma que come, que bebe.  De como - por que não? - se lambuza desajeitadamente tomando um sorvete num dia quente de dezembro.
Dessas coisas todas, e de outras mais tácteis ainda, é bem disso que estou falando.

terça-feira, outubro 07, 2014

o bolsa bolsa

Estive na Inglaterra em 1982 para estudar inglês.  Fiquei dois meses numa pequena cidade chamada Bournemouth, frequentei uma boa escola e me hospedei com uma família inglesa no bucólico bairro de Talbot Woods.  Até hoje me lembro do endereço - 6, Dulsie Road - e da casa que era a mais modesta da melhor rua do melhor bairro da cidade.  Havia uma crise na Inglaterra punk no início dos 80's. Emergentes, meus landlords eram jovens, faziam um super esforço para melhorar de vida e apenas por essa razão recebiam estudantes em casa - quem conhece um pouco os ingleses sabe que não são lá muito chegados a hóspedes. Minha landlady era uma pessoa legal, nem tanto meu landlord, e me apaixonei pela filha deles, uma doce e educada menina loura de quatro anos de idade e com cabelos compridos até o meio das costas. Nicholas Michelle era seu nome, mas tomei a liberdade de chamá-la "beautiful" como seus pais a chamavam.  Era muito fofa.  Eu tinha 19 anos e a entretinha brincando de boneca e lendo histórias, mesmo que com o sotaque que tentava sem muito sucesso aprimorar.  Para ir a escola eu andava 20 minutos a pé, porque num frio de 20 graus negativos não dá para ficar parado esperando o ônibus. Era tão frio, mas tão frio, que antes desse gelo todo só o inverno de 1968.  Há pessoas que até hoje se lembram do gélido inverno europeu de 82.  Um dia, voltando da escola, num friaca de doer os ossos, vi uma fila comprida na agência de correios que terminava na rua. Estranhou-me o fato de na fila só haver mulheres, todas muito bem vestidas. Quando cheguei em casa, minha landlady se queixou justamente do frio que sentira na fila dos correios.  Que coincidência! Soube então o porquê desse flagelo todo: era o dia do pagamento de um benefício que todo mês as mulheres com filhos recebiam do Estado Britânico. Bastava ter um filho, não importava a classe social.  O valor do benefício era o mesmo para todas. A razão do pagamento do benefício para uma terceiramundista como eu era bizarra.  Segundo ela, as mulheres britânicas não sabiam muito bem quanto os seus maridos ganhavam, de forma que aquele dinheiro era para elas próprias ou para seus filhos, como decidissem. Poderiam gastar no que desejassem.  Como eu havia comprado uma bolsa naquele mesmo dia no valor aproximado do benefício, perguntei-lhe se com ele poderia ter comprado... uma bolsa. "Sim, claro!", respondeu-me taxativa.  Poderia comprar o que bem entendesse.
Pensei no 'bolsa bolsa' dia desses e me ocorreu pensar por que será que mais de 30 anos depois alguém reclama de se ter instituído o bolsa família para os pobres no Brasil, um país que, ainda hoje, persiste rico para os ricos e pobre para os pobres. 

quinta-feira, junho 19, 2014

Vila Maria, Bicho de Pé e a verdadeira teoria da redução de complexidade





“Por que facilitar se é tão simples complicar?”, perguntou o jurista. Já ia tarde o seminário e havia meros gatos pingados, eu incluída, numa última palestra de último dia.  Quem resiste a uma maratona de dias sem fim com palestras longuíssimas rodeado de advogados e seus indômitos celulares?  Aquele finzinho era uma quase-benção e então contava o jurista (uma figura ímpar, culta e muito divertida) sobre sua primeira causa, cuja defesa, em 40 laudas, caprichava nas teses.  Confiante, perguntou a um ex-professor seu, juiz aposentado, o que dela achava, recebendo como resposta uma lição lapidar: “muito boa, mas nenhum juiz vai ler uma defesa de 40 páginas. Acho que merece uma redução de complexidade”, tendo pronunciado ‘redução de complexidade’ com as vogais bem abertas, já que o jurista era baiano. Dias depois ainda repercutia em mim aquela frase que, primeiro, virou um aforisma meio de brincadeira e, depois, uma espécie de teoria para tudo na vida. É isso, nada de sofisticações desnecessárias. Tem que ser justo. Tem que ser preciso.  Tem que ser simples. 
Desde então, não duvido estar diante de algo fadado ao sucesso quando me deparo com a materialização dessa teoria.  Foi o que me aconteceu ouvindo e vendo a banda Bicho de Pé: está tudo ali, tudo o que precisa haver de instrumental e vocal, verdadeira mmbb (música muito boa brasileira).  Dá vontade de ouvir até não mais poder.  Uma identidade tão grande senti que me dei conta que a brasilidade sopra de onde quer e alcança o que nem sempre espera (no caso eu mesma, carioca da gema, que me apaixonei pela banda do novíssimo ritmo 'xoxote'). O mais curioso é que a tal teoria da redução de complexidade, tão rara de acontecer, veio num só dia em dose dupla - horas antes, havia visto “Vila Maria”, peça em cartaz no Teatro Gonzaguinha até o fim do mês. Texto, direção e atores na justa medida da perfeita harmonia, como uma boa peça de teatro deve ser. Bem concebida do começo ao fim, vai fluindo redonda até fazer a plateia sentir pena quando acaba.  Essa teoria é tão escassamente vista na dramaturgia e, no entanto, bastam bons atores, um bom texto e uma boa direção.  Como tampouco são banais uma mulher bonita sem nenhuma maquiagem ou um corpo bem feito em que nada sobra e nada falta.
Confesso que foi um refrigério ver que ainda existe gente que percebe haver uma imensa força na simplicidade da cultura brasileira.  Foi mesmo redentor encontrar artistas que não quiseram reinventar a roda para revelarem ao mundo como são bons, como são geniais.   

Acho que foi uma benção, sobretudo, porque os tempos cá em Terras Brasilis andam para lá de complexos.    

sábado, abril 26, 2014

em plena entressafra existencial, o carnaval

Se mudanças são complicadas, mais ainda são entressafras existenciais. A intercessão do nada que passou e do nada que ainda não aconteceu é um vácuo absurdo, que não será preenchido pela teoria dos conjuntos.  Mas consegue ser pior, porque, como o diabo, finge que não existe.  Então você está tocando a sua vida e súbito percebe que está aprisionado por sua própria displicência consigo mesmo.  Aconteceu-me há anos atrás.  Não me dei conta que o carnaval se aproximava e até hoje me intriga o fato de ter perdido os comentários sobre alguma eventual opção. Para onde planejavam ir as pessoas ou mesmo quem haveria de ficar no Rio naquele tempo em que o carnaval se resumia ao desfile da banda de ipanema, às escolas de samba na sapucaí e aos bailes gay, foi como se nada tivesse sido dito.  Não me dei minimamente conta.  Estava, depois de anos, desacompanhada.  E, o pior dos mundos: não tinha uma amiga entressafrada como eu, um amigo disponível, um amigo gay querendo alguma folia.  Não tinha cachorro. Não tinha casa, porque a dos meus pais estava sendo pintada (foi mesmo há anos atrás) e eu estava hospedada com familiares.  Que, naturalmente, tinham planos para o carnaval e que sem problemas teriam neles me incluído se eu...bem, se eu os tivesse ouvido.  Tendo passado o mês de janeiro rapidamente (e não sei o que não fiz naquele mês), chegou fevereiro e lá pelas tantas acordei em pleno sábado de carnaval.  Sozinha, com a geladeira meio vazia. Porém, como o passar do tempo nem sempre é ingrato, lá pela segunda-feira apareceu alguém e rolou uma companhia para ir ao menos até o bar lagoa. Agora, se naquele tempo tudo me passou desapercebido por que raios eu fui me lembrar disso justo neste momento? Talvez porque pensei em escrever essas maltraçadas no carnaval, que já passou, e também porque hoje realizei que já passaram a quaresma e a Páscoa e - incrível! - semana que vem tem o feriado do dia do trabalho.      

quinta-feira, novembro 21, 2013

procure pensar

Olhar para o passado sempre explica algo do presente, olhar para alguém do passado pode ser mais esclarecedor ainda. Assisti ao documentário sobre o Sobral Pinto e uma luz se abriu. Ele daria toda a explicação pertinente, perspicaz e suficiente a esta polêmica sobre as biografias. Com sua verve já teria há muito tempo proclamado a inconstitucionalidade do artigo 20 do Código Civil. Uma pessoa que lutou pela democracia, pela liberdade de expressão e, sobretudo, pela cidadania responsável já teria entornado esse caldo todo – e sem concessão meio-termo, tipo “isso precisa ser combinado” ou “só queremos conversar”. Foi bom lembrar o quanto custou redemocratizar esse país. Eu estava no comício das Diretas Já e costumo dizer que minha geração é órfã do malogro dessa campanha. Sobral explicaria também o comportamento dos manifestantes e do black bloc. Aliás, explicou: disse que à juventude recomendava se manifestar sempre em ordem e pacificamente justamente para resgatar um tempo em que o direito, ao imperar, a tudo se sobrepunha. Deu o depoimento de haver vivido neste tempo, antes da Primeira Guerra Mundial, e que daí em diante a vida mudara, as relações humanas também (tudo para pior), e que depois da guerra o mundo tinha se tornado um lugar infinitas vezes mais violento. A mudança do mundo e a velocidade da mudança, também sobre isso me fez pensar o Sobral. Lembrei-me do caso do campeonato de lançamento de anões a distância que tanta polêmica causou mundo afora, exemplo dado em sala pelo professor da “nova disciplina dos contratos”. O caso dividiu, literalmente, a turma: é possível, é legítimo, fere a ordem jurídica, permitir que anões sejam arremessados e que saia vencedor quem conseguiu lançá-lo a uma distância maior? Ouvido, o presidente da associação de anões declarou que em nada aquilo feria a sua dignidade, que estava com equipamento de proteção e que, além de tudo, faturava a sua graninha. Mas será que poderia ele decidir por si ou há casos em que o estado deve defender a pessoa dela mesma? É verdade que argumentos consistentes existem para os dois lados. Calculo que no caso das biografias a mesma coisa aconteça. E daí outra dúvida me ocorreu: será que devem os biografados ser defendidos de si próprios ou das suas biografias?

p.s. ainda sobre a reconstrução da democracia e atuação dos membros do Judiciário e advogados, vale ver a tese engendrada pelos advogados quanto ao cabimento de habeas corpus para acusados de crimes políticos, o que havia sido vedado por um decreto. Em suma, os advogados impetravam o habeas corpus logo que o acusado desaparecia argumentando que não havia acusação formal de crime.  Com isso, os juízes davam liminar e oficiavam a todas as delegacias e unidades prisionais para informar se o acusado lá estava preso (por isso ficou conhecido como "habeas corpus de localização"). Identificada a prisão, o acusado era solto em cumprimento à ordem judicial.  Centenas de pessoas escaparam dessa maneira.  Corajosos os juízes e criativos os advogados - a reconstrução da democracia requereu também coragem e criatividade. 

Atualização em 11 de junho: Por 9 votos a 0, o STF, em julgamento ontem, decidiu pela inconstitucionalidade do art. 20 do Código Civil.  Segundo a Relatora, Ministra Cármen Lúcia, "cala boca já morreu". Histórico.

quarta-feira, julho 03, 2013

mind the gap

Manifestações pacíficas, repúdios, barulho, trânsito bloqueado, saques, polícia, muita confusão.  Uma delas vi acontecer na esquina da Presidente Vargas, eu no meu carro e mais uma meia dúzia de pessoas por ali já bem tarde, justo naquele momento.  A Polícia Militar, quando enfim conseguiu liberar a pista, não precisou esperar mais de dez segundos para que eu ultrapassasse aquele circo armado.  Estranhamente não tive medo, mas estava bem alerta, a postos para salvar minha pele, já que era mesmo o caso de salvar a pele.  Isso aconteceu muito antes de o movimento crescer na proporção em que cresceu.  Aí vieram as manifestações, acompanhadas da inundação de opiniões em todos os sentidos.  Nunca vi tanta gente tendo tanta opinião e, ao ser indagada pelos meus familiares europeus do que se tratava, senti que acertara na síntese, ainda que, ao fazê-la, estivesse bem atônita: protesta-se contra a corrupção e contra a falta de bons serviços públicos. 
Passado um tempo, a culpa do mundo que de início fora depositada apenas no governo federal acabou por ser dispersada.  Hoje li que toda a classe política eleita perdeu popularidade.  Intriga-me como algum político pode perder tanta popularidade de um dia para o outro e calculo que ou bem a popularidade não era consistente ou bem num único golpe toda a consciência política foi apreendida, numa queda de ficha coletiva. 
Mas se tudo parecia estar caminhando com alguma ordem, por que então o protesto tomou tamanha proporção? Por que existe tanta ambiguidade entre o que se pensa e o que se pratica? Por que há um espaço entre o que se vive, o que se percebe da vida, e o que se quer de fato? Por que é esparsa e escassa a comunicação com os cidadãos em plena democracia?Por que o caldo estava para entornar e ninguém se dava realmente conta do nível de intolerância a que se chegara?  As vozes das ruas já murmuravam há muito tempo, recolhidas, mas, sabe-se lá porquê, ninguém parecia estar percebendo o murmúrio inicial, tampouco o volume que poderia ganhar.  
Permaneço intrigada, mas uma luz se abriu.  A caminho da final da Copa das Confederações, no metrô, ao ouvir as instruções para o desembarque, agora ditas também em inglês, percebi que ali poderia se aviar a fórmula para a classe política  sobreviver - e  sobreviver a si própria - uma coisa tão sutil e tão certeira: "mind the gap".