Ganhei a rua cedinho, como era o
previsto. Às seis da manhã já caminhava
em direção ao meu destino final; caminhava em passos largos, e assim não tardei
em chegar à rua principal do meu bairro.
Havia bastante gente tendo o dia mal irrompido, todos caminhando
silenciosos. Tudo indicava que caminhávamos
ao mesmo destino. Uma multidão
silenciosa, solene. Parei para respirar,
perdi o fôlego rápido. Entreouvi os
sinos das duas igrejas próximas badalando ao mesmo tempo, num ritmo
alternado. Detive-me para ouvir melhor e
recuperar-me um pouco. Confesso que
estranhei imenso. Muitos meses sem ouvir
um sino. Muitos meses sem ver gente na
rua. Num bar. Num restaurante. Numa igreja.
Num cinema, num parque. Um
silêncio mórbido se abatera sobre a cidade, sobre o país, sobre o planeta. Era um silêncio que destilava dor. Naquele tempo de reclusão, eu vira poucos
transeuntes nas raras vezes que saí à rua.
No começo havia mais gente.
Depois, apenas mascarados no supermercado, na farmácia, na máquina do
banco. Pouco a pouco, a presença dos
mascarados era mais e mais rarefeita. Muitos
certamente haviam morrido. Não via
sorrisos há tempos tampouco. Foram
meses, meses que se alongaram silenciosos, ansiosos, tristes. O tempo segurando o tempo, pulsando angústia
e incerteza. O tempo se arrastando sem ninguém
saber o que viria a seguir. O silêncio era
a tristeza. Como era mesmo a vida antes?
Temia esquecer.
A segunda onda fora pior, muito
pior. A boa nova anunciada logo
evanesceu. A cidade se fechou ainda mais
antes de reabrir. Havia tanto terror na
súbita mutação do vírus que já então infectara milhões de pessoas e ceifara
milhões de vidas. A mutação viera mais
letal. O que fazer ante àquele anúncio? Nada dera real conta do Covid-19, quem dirá
do Covid-20. Era como se fosse o primo
irmão de uma bomba atômica arrebatada sobre todos – e em tempos de paz. Sim, uma paz imposta pela pandemia mais letal
que o planeta havia visto desde tempos imemoriais. Seria impossível haver guerra, os soldados estariam
mortos antes de alcançar as trincheiras.
Muitos já haviam morrido, aliás.
Sentimento estranho o de ser uma
quase-sobrevivente, porque sobrevivente da própria biografia.
Percebi então que o céu estava
azul, azul de doer. Fazia sol na minha
cidade. E eu podia caminhar sem máscara e sem medo. Eram seis e meia da manhã e
senti uma ponta de felicidade no peito.
Felicidade. Alegria. Liberdade.
Como era a vida antes mesmo? Não podia esquecer.
No quê exatamente se transformara
a vida naquele tempo era difícil precisar.
Basicamente, a vida dependia de uma conexão à rede. Era zoom, whattsapp e que tais. Acordava-se
já na rede. Era o jeito. E nem se dar mais ao luxo de ignorar as
notícias era possível, porque a primeira vez que ouvira as sirenes tocar sem
saber a razão – me havia dado ao sacrossanto luxo da leitura naquela tarde, e
apenas leitura - me apavorei. Ainda
ouviria as sirenes tocar muitas vezes.
A terceira onda viera
aterrorizante. Pessoas morreram às
pencas, as morgues e os cemitérios estiveram cheios. A capacidade de mutação do vírus era tamanha
que os tratamentos para o Covid-19 não muito serviram para o Covid-20, e menos
ainda para o Covid-21. A velocidade da
mudança vinha sendo prenunciada pela ciência para a mudança climática e ali tudo
indicou haver um vínculo entre esses fenômenos.
Era o preço pago pelos ouvidos moucos feitos aos apelos renitentes dos
cientistas, esses seres desprezados pelos negacionistas que naquele tempo
dominaram o cenário político. A negação
cobrou seu tributo: os negacionistas morreram quase todos na segunda onda; os
restantes, capitularam. Um certo
presidente de memória nada saudosa morreu e de sua família não se ouvia mais
falar. Talvez estivessem mesmo mortos.
Se não estavam, queriam estar.
Chego à Lagoa e ouço mais um
badalar de sinos. Descendo Botafogo,
logo alcançarei a Praia do Flamengo e o Aterro.
Lá diziam me esperar.
Fora apenas uma resposta à uma
corrente dessas de rede social: o que você propõe para o primeiro dia após a
fim da pandemia? Eu tinha sede da vida
táctil. Muita sede e fome. Propus uma terapia do abraço num lugar
público bem amplo e lancei: “Proponho um abraçaço no Aterro do Flamengo de
manhã bem cedo”. Que se abrace quem se
encontrar pela frente, deixe-se estar no tempo que quiser o abraço durar.
O post virou um recorde com um
milhão, quinhentos e vinte e sete mil repostagens. Viralizou.
Não era crédito meu, não era um lampejo de inteligência, mas a tradução
do sentimento que reinava meses depois da decretação da pandemia pela OMS,
ainda nos tempos do Covid-19.
Porque não seria o abraço dos
afogados. Seria, enfim, o abraço de nós,
os sobreviventes.
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