terça-feira, setembro 03, 2019

um ano depois...

... posto esses dois textos.  Incrível que não tenha me dado conta do tempo que fiquei sem passar por aqui e mais incrível ainda que apenas agora me dei conta que as histórias que tenho são de pessoas que se foram esse ano - Domingos de Oliveira, João Gilberto e, mais recentemente, Fernanda Young.  Depois falo dela. 
Que ano, meu Deus.

Domingos e os Meninos


Domingos de Oliveira morreu e só agora me dei conta. Que estranho, a morte sempre me impacta logo e tanto, ou será que em algum momento deixou de impactar e não percebi? Essa reação tardia me é estranha. 

Não era sua amiga, quem sou eu. Encontrei com ele um dia no aniversário da minha amiga Leila Meirelles, eles, sim, eram amigos. Fiquei sem graça de pedir para tirar uma fotografia com ele, então tirei dele depois de silenciar o telefone, mas acho que ele percebeu, que de bobo não tinha nada.

Eu adoro seus filmes. E de um em particular, porque me fez ver o menino que todo homem nunca deixa de ser - e depois disso confesso ter passado a ver os homens de outro jeito. 

Assisti “Juventude” no dia 25 de dezembro de 2008 às 16:00 hs com mais meia dúzia de 3 ou 4 pessoas na sala. O filme foi em diversas passagens aplaudido em cena aberta. Todos éramos fãs dele, ou não estaríamos no dia de Natal à tarde assistindo um filme de Domingos de Oliveira. Que tratava de 3 amigos que se encontram para festejar o aniversário de um deles e estão impressionados com a chegada dos 70, a idade do “você está ótimo”. Tendo percebido que meu psi estava também pasmo com os 70 que em breve completaria, dei o dvd pra ele de Natal na sessão de terapia seguinte. Ele amou o filme, disse que tinha sido o melhor presente daquele Natal.

A conversa que o filme nos trouxe sobre o tempo, as idades, e sobretudo sobre o menino que todo homem nunca deixa de ser nos rendeu senão a mais intensa e densa sessão de análise, certamente uma delas. Para nós dois, aliás.

Domingos era, ele mesmo, um menino, um menino travesso, arteiro e apaixonado pelas mulheres, que me fez entender os homens um pouquinho mais, porém um pouquinho que me deu conforto e redenção. Foi com esse filme que relembrei a menina que sou sendo já mulher e a menina que também nunca vou deixar de ser. Somos umas crianças na versão adulta, uma versão que o tempo concede, e não a idade. É estranho, mas é isso, sem tirar, nem por.

Quem sabe, Domingos, não nos encontramos num pátio de recreio? Será que se eu tiver coragem de te chamar pra brincar você brinca comigo, menino?

João


Olho a última foto de João Gilberto no jornal hoje, dois dias depois de sua morte. Depois da inundação na rede de homenagens mais que merecidas a um gênio da raça - que abençoada uma pessoa que entra para a história pelo bem que fez - aquele olhar dele me dilacerou.

Não que seja difícil dilacerar meu coração. Não em particular quando tento manter ainda vida num coração que ultimamente parece senão em cacos, bem craquelado.

O olhar - aquela expressão em seu olhar - reconheço nos meus velhos, os que já partiram e em alguns que por aqui ainda estão.

É um olhar de espanto, de espanto com o que está diante dele - o mundo. Há um espanto ínsito ao envelhecer, ao acumular anos à própria existência. Ignoro se é pelo fato de se estranhar ainda se estar por aqui depois de tanto tempo, se é porque o mundo se tornou um lugar estranho. Minha bisavó Mathilde, sempre tão alegre, e que partiu aos 103 anos de idade em casa sem dor ou agonia, um dia me disse que “era muita vida vivida”. 

Não é estar no mundo, é em que mundo se está. 

Com a velocidade da mudança a cada dia maior, me inundou um enorme medo, e não apenas por mim, mas pela minha geração que aqui anda tão frustrada. Estamos ainda pensantes e pulsantes, mas correndo da imensa roda da vida que nos alcançará. 

A ideia da morte nunca me pareceu má e nunca a vi como o oposto da vida, mas do nascimento. Não existe vida sem morte, tampouco morte sem vida.

Existirão, porém, anos no porvir sem tanto espanto?